Marcos
Fabrício Lopes da Silva*
Existe uma abordagem crítica que considera o
Brasil como o somatório de vários Brasis: o Brasil pobre e o Brasil rico,
autoritário e tolerante, moderno e atrasado, o Brasil do Norte, Nordeste,
Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Ao compor e cantar a música Vixe (1997), Tim Maia entra no time daqueles que consideram essa
visão maniqueísta demais. De maneira propositiva, o Síndico da MPB procurou trabalhar a ambiguidade como uma categoria
sociológica fundamental para compreender a formação cultural do Brasil e,
consequentemente, a forma de ser brasileiro.
Tim Maia apresenta, primeiramente, os obstáculos
que dificultam o desenvolvimento do país: “Vixe tanta gente/Tanta perda, tanta
guerra/Tanta perdição/Vixe tanta coisa/Tanto lixo, tanta luta/Tanta
rejeição/Vixe pouca água/Pouca sorte, pouca roupa/Pouca atenção/Vixe muita
fome/Muita morte, muita sede/Muita solidão”. Sem perder de vista o encanto
pelas virtudes brasileiras, o cantor não supervaloriza os problemas nacionais,
preferindo ampliar o foco no poder de resolução presente no reconhecimento dos
valores positivos da nação e na aplicação destes em iniciativas proveitosas para
o bem-estar coletivo: “Vixe o desperdício/De uma terra fértil e forte/Pro poder
plantar/De tantas riquezas/Água pura,/Rios, matas, fartos minerais/Que bobagem
é essa/Vamos povo, vamos gente/Vamos chegar lá/O país é forte, é bacana/É
bonito/Vamos acordar”. Era como se o Síndico
da MPB misturasse o ufanismo romântico de País tropical (1969), de Jorge Ben Jor, e o realismo cético de Que país é este (1978), de Renato Russo
(Legião Urbana), para poder demonstrar
que o Brasil é, ao mesmo tempo, o país da “problemática” e da “solucionática”.
Esta canção de Tim Maia faz parte de um pensamento
social brasileiro que considera a ambiguidade como uma categoria importante na
explicação e compreensão de nossa identidade. Lembra o princípio antropológico adotado por Roberto DaMatta que, em suas
obras, comprova como o nosso cotidiano, as nossas cerimônias e os nossos
rituais estão eivados de ambiguidade. Em Carnavais,
Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (1979), o
antropólogo analisa, entre outros, dois rituais nacionais: o dia da pátria e o
carnaval, que se configuram como rituais simétricos e inversos no quadro da
vida social brasileira. “O povo que faz o carnaval é precisamente o povo do
Sete de Setembro; o chefe ‘boa-praça’ é o homem do ‘você sabe com quem está
falando?’; o homem cordial é capaz de violência; e o malandro e o caxias são
igualmente admirados”, constata DaMatta.
Vixe, de Tim Maia, recupera
as origens históricas da ambiguidade brasileira. Desde o século IV, começou a
se formar na Europa um mito que versava sobre a existência de um Paraíso
Terrestre. Miragem projetada numa localidade geográfica real, recôndita no
mundo ainda desconhecido. A exuberância de nossas florestas, o ouro encontrado,
as delícias das frutas tropicais, a beleza das índias nuas, entre outros
fatores, levaram os europeus “descobridores” a projetarem sua “visão do
paraíso” para as terras brasileiras. Ao mesmo tempo, deu-se início ao processo
de exploração do Brasil Colônia. A escravidão passou a ser a relação de
trabalho predominante – uma relação tão desumana que se poderia projetar, também,
nessa mesma terra, a ideia de inferno. Assim, a nossa ambiguidade começou a
aparecer desde o nosso mito de origem: entre o paraíso e o inferno.
Reconhecido mundialmente como potência ambiental,
o Brasil, porém, ainda carrega o estigma subalterno submetido a ele desde os
tempos de colônia de exploração. Enquanto a mercadoria cana-de-açúcar, por
exemplo, se transformava no principal protagonista de nossa história, passando
a ter um status de sujeito, os negros
escravizados eram comercializados como meros objetos. O próprio nome dado ao
país reforça esta ambiguidade. Conforme Otávio Souza, em Fantasias do Brasil (1994), “Brasil, o nome do pau, primeiro
produto de nossa terra esgotada pela fúria colonialista... nome do produto
explorado; brasileiro, nome do explorador: é essa dupla referência que nosso
passado colonial parece ter reservado”. Portanto, de terra de Santa Cruz a
Brasil, experimentou-se o convívio do ideário cristão de igualdade, do
catolicismo ibérico, com 400 anos de escravidão. A ambiguidade desenvolvida
entre sujeito e objeto, corpo e alma, vai ser fundamental para o entendimento
do dilema brasileiro. Aceitava-se a escravização do negro, a partir de uma
retórica dualista, pregada pelas políticas do Reino e da Igreja, em que só o
corpo se sujeitava às penas do “cativeiro temporal”, cabendo às almas “a
liberdade, ou alforria eterna”. Sobre esta ambiguidade, Alfredo Bosi, em Dialética da colonização (1992), alerta:
“Estranha religião meio barroca meio mercantil! Religião que acusa os
vencedores, depois entrega os vencidos à própria sorte. Religião que abandona o
verbo divino, frágil, indefeso, às manhas dos poderosos que dele saqueiam o que
lhes apraz”.
Ciente do poder corrosivo do vil metal, Tim Maia,
de maneira astuta, mostra que a ambiguidade brasileira deve ser lida como uma
de nossas vantagens relativas. Relativas,
por quê? Pois além de ter composto sabidamente uma espécie de mix de Canção do exílio (1847), de Gonçalves Dias, e O navio negreiro (1869), de Castro Alves, para compreender o Brasil
ambíguo, na canção Vixe, Tim Maia
também foi magistral, ao criticar a força dos nossos vícios patrimonialistas,
em Não quero dinheiro (1971): “Quando
a gente ama/Não pensa em dinheiro/Só se quer amar/De jeito maneira/Não quero
dinheiro/Quero amor sincero/Isto é que eu espero/Grito ao mundo inteiro/Não
quero dinheiro/Eu só quero amar”. Este, sim, o verdadeiro grito de
independência do Brasil!
*
Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e
doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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