quinta-feira, 3 de setembro de 2015

DUNGA, ROMÁRIO E O PAÍS DUAL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Em matéria de identidade futebolística, meus valores foram construídos, enquanto torcedor da Seleção, a partir do momento em que vi Dunga e Romário jogarem no mesmo time que ganhou, pelo Brasil, a Copa do Mundo de 1994, que foi disputada nos Estados Unidos.  Do elenco tetracampeão, quis destacar estes atletas porque penso que eles representam filosofias bem distintas, sendo que ambas integram o mundo da bola e inspiram os nossos modelos de liderança.

Capitão daquele time, Dunga, ícone do futebol-força, representou a liderança eficiente. Rígido em seu posicionamento tático, obediente ao comando técnico, o gaúcho de Ijuí tinha como meta vigiar a criatividade alheia para recuperar a posse de bola a favor do seu time. Antes destruir a jogada do rival do que construir o próprio jogo – era o estilo do meia desarmador. Se preciso for, ele dava “carrinho” ou jogava a “bola pro mato”, pois “o jogo é de campeonato”. Forte, no caso dele, não era o drible inspirado, mas a disposição transpirada de correr o campo inteiro, como um verdadeiro “cão-de-guarda”, que seguia à risca o seguinte mandamento: “a bola é minha, e ninguém tasca”. O outro era sempre considerado um adversário a ser combatido, já que o importante, para o capitão, era competir com a obrigação de sempre ganhar. Longe de ser um maestro, Dunga foi um exemplar carregador de piano, uma formiguinha a serviço do trabalho coletivo. As boas maneiras ficavam de lado quando a perfeição não era atingida. Dunga não dispensava palavrões e nunca foi de meias palavras. Jogava de cara feia para impor respeito. Sua marca registrada era a indignação constante simbolizada pelos punhos cerrados e braços agitados, seja para comemorar, seja para protestar. Não era um craque e sim um atleta esforçado, um batalhador. Como meio-campista, distribuiu muito mais a bola do que arriscou passes decisivos.  Compensava a falta de talento com a raça proclamada aos quatro ventos como virtude dos guerreiros.

Diante de tais características do mencionado atleta, podemos concluir que os fundamentos do “Paradigma Dunga”, tributário ao estilo ludopédico europeu (frio no temperamento esportivo, estratégico na articulação das jogadas e voluntarioso fisicamente), apresenta os seguintes valores: a) a liberdade só é bem-vinda quando nela há disciplina; b) a criatividade deve servir ao bom funcionamento do sistema; c) a responsabilidade coletiva deve iluminar o talento individual; d) o estímulo do hábito de planejar sempre para jamais correr riscos; e) o incremento da habilidade inventiva com o desempenho físico ideal; f) a supremacia da obediência tática em detrimento do improviso lúdico; g) o drible como último recurso, devendo ser privilegiado o passe certo e eficiente.

Se Dunga era a formiguinha operária, o Baixinho fazia o papel de cigarra. Vamos ao “Paradigma Romário”, o craque foi um dos maiores artilheiros da história do futebol mundial, com 1.003 gols. Sua meta era balançar as redes do adversário e não evitá-los. De talento raro, o atacante carioca da gema tinha habilidade com as duas pernas, além de ser autor de dribles desconcertantes e gols sensacionais. Genial e genioso, gostava de construir obras antológicas e driblar a marcação destruidora dos opositores do seu talento magistral. Mesmo com pouca estatura, sabia cabecear como poucos, pois tinha uma impulsão incrível. Entre dois grandalhões suecos, por exemplo, o baixinho ficou parado no ar como beija-flor e testou a bola para o fundo da rede adversária, classificando o time canarinho para a final da Copa do Mundo de 1994, que venceríamos da Itália, nos pênaltis. Quando jovem, o nosso “Macunaíma de chuteiras” concentrava suas jogadas na explosão muscular responsável por arrancadas certeiras. Experiente, com esperteza e malandragem, enquanto os outros se matavam para correr atrás da bola, a bola corria atrás do craque, graças ao posicionamento preciso em campo e ao poder de fogo calibrado que o fizeram o “rei da grande área”. O artilheiro não era de correr, porque conhecia como poucos os atalhos do campo de jogo. Irreverente e polêmico, ora bad boy topetudo, ora peixe camarada, Romário exercia em campo uma liderança desobediente, marcada pela individualidade autoconfiante, avesso às concentrações e à rotina de treinamentos.

            O futuro reservou a Dunga a oportunidade de ser treinador da Seleção Brasileira. Estilo linha dura, assim como no campo, Dunga costuma soltar os cachorros, ao se sentir ameaçado ou não pelos oposicionistas. Ele, alvo de críticas recorrentes, sofre de um certo grau de vitimização, lidando, muitas das vezes, mal com o pensamento divergente. Bem que o capitão do tetra poderia aprender com a filosofia descontraída do seu companheiro de seleção, Romário: "Quem precisa ter boa imagem é aparelho de TV". Coube a Romário o exercício do mandato de Deputado Federal (PSB-RJ), comportando-se como ferrenho crítico da CBF, da Fifa e do Governo Federal, quanto à organização da Copa do Mundo, no Brasil. Contraditório, o Baixinho participou da campanha publicitária das Havaianas, em clara referência à promoção do referido evento esportivo. Flexibilidade ou incoerência? Na hora da razão, somos um; na hora da emoção, somos outro – assim se comporta a liderança cordial à maneira de Romário, agora Senador da República. Dunga prefere a linha da liderança disciplinadora e coerente. Rígida demais, por vezes. Duas formas de ser que demonstram um Brasil dual ou ambíguo por natureza.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


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