Marcos Fabrício Lopes da
Silva*
De quantos discorreram sobre o Brasil e sua
trajetória, desde o “Descobrimento” até os dias de hoje, foi em Sérgio Buarque
de Holanda que encontrei a melhor ‘‘explicação’’ para as coisas que acontecem
ao nosso redor. Aprendi, com o autor de Raízes
do Brasil (1936), que nas expressões de vida coletiva convivem dois tipos –
o “aventureiro” (caçador) e o “trabalhador” (lavrador) – que se combatem e
regulam contraditoriamente as humanas atividades e o próprio jeito de ser do
homem. Para o trabalhador, interessa o ‘‘como’’, o ‘‘porque’’, a ‘‘hora’’ para
chegar ao ponto desejado. No segundo caso – o “aventureiro” – seu ideal será
colher o fruto sem plantar a árvore. Nunca vi melhor expressão para designar os
homens de nosso tempo. Melhor: para retratar os políticos que, chega eleição,
passa eleição, não mudam de comportamento. São assim, nasceram assim, vão
continuar assim. Não é verdade que cada povo tem o governo que merece.
Há diferenças notáveis entre o ‘‘aventureiro’’ e
o ‘‘trabalhador’’. O “trabalhador” é o que vê primeiro a dificuldade a vencer,
mas não se atropela para alcançar o prêmio que lhe cabe. O “aventureiro” não
tem limites, está a serviço do poder, mascara a realidade, joga sujo para
ganhar. De qualquer jeito. Há, portanto, uma ética do “trabalhador” e uma ética
do “aventureiro”. O primeiro caminha lentamente e seu campo de visão abrange
além do olhar. Porque sabe que há tempo para tudo. O segundo vai na base do
vale-tudo. Daí Sérgio Buarque de Holanda sustenta que, na obra de ‘‘conquista’’
e ‘‘civilização’’ dos novos mundos, o ‘‘trabalhador’’ foi presença diminuta.
Era um tempo de gente “valente”, os homens de “grande ação”, fossem bandidos
oficiais ou não, homens das armas, aventureiros de todo naipe, principalmente
degredados, como ferozes cães treinados para vigiar e matar, se preciso. Afinal,
o que faziam os capitães do mato? Só gente desse jaez poderia atender aos
ditames da ordem colonial. E os há, ainda hoje.
O fato de o Brasil ficar entre um extremo e outro
– mas sempre preferindo a conciliação – tem uma explicação. A lei, por aqui,
não tem muito valor, a não ser para determinados bacharéis em seus conflitos
forenses. No cume do Estado – no Império como na República – há pessoas que gostam
de governar sem questionamento. Mesmo com o Parlamento aberto, a chamada
Justiça soberana, com ditadura ou regimes com mandatos temporários. Sérgio
Buarque de Holanda diz sem meias palavras que as nossas Constituições são
feitas para não serem cumpridas, as leis e ordenações existem para serem
violadas, tudo, naturalmente, em favor dos poderosos. É que, dada a nossa
formação, subjugada ao mando de El Rei, os políticos jamais se interessaram
pelos princípios, salvo as clássicas e honrosas exceções. Preferem tratar com
as gentes como simples vassalos. Princípios e programas? Daí a famosa frase
atribuída a Holanda Cavalcanti: ‘‘Nada há mais parecido com um saquarema do que
um luzia no poder”. Falava ele da semelhança entre os dois grandes partidos no
tempo da Monarquia.
Entre o ‘‘trabalhador’’ e o ‘‘aventureiro’’, este
sempre prevalece. Cinco séculos depois do “Descobrimento”, eis-nos às voltas
com as tentativas de eleger governos democráticos, mas dominam os “coronéis”,
‘‘sabidos’’, os ‘‘astutos’’, os ‘‘aventureiros’’ que se misturam nas legendas
patrimonialistas das elites. E mantém a hegemonia. O dinheiro torna árido o
coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção da solidariedade
e da fraternidade. Todo o mal-estar que reina no mundo pela má distribuição das
riquezas vem daí. Os donos de riquezas querem ficar cada vez mais ricos. E
acabam oprimindo os pobres, fazendo-os ficar cada vez mais desamparados.
É o que sempre me vem à mente, quando leio esta
passagem do Evangelho. Alguém perguntou a Jesus o que devia fazer para ter como
herança a vida eterna. ‘‘Cumprir os mandamentos’’ foi a resposta de Jesus, que
até enumerou pacientemente esses mandamentos: ‘‘Não matar, não cometer
adultério, não furtar, não levantar falso testemunho, não prejudicar a ninguém,
honrar pai e mãe’’ (Mc 10,19). O jovem respondeu que tudo isso ela já praticava
desde seus verdes anos. Jesus não pôde deixar de envolvê-lo num olhar de
infinita simpatia; e acrescentou: ‘‘Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o
que tens e distribui aos pobres, e terás um tesouro no céu. Então, vem e
segue-me’’ (Mc 10,21). Mas aí aconteceu a decepção. O jovem era muito rico. Não
teve coragem de renunciar à sua riqueza. Ele afastou-se cabisbaixo, entregue à
pobreza de sua riqueza. Foi quando Jesus fez a grave admoestação: ‘‘Como é
difícil os que têm riquezas entrarem no Reino de Deus!’’ (v. 23). E diante do
espanto dos discípulos, completou ainda com mais veemência: ‘‘É mais fácil
passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de
Deus!’’ (v. 25).
Se o homem adotasse esse conselho do sábio
bíblico, seria capaz de construir um mundo mais feliz. E descobriria no fim o
que o sábio descobriu a respeito da posse da sabedoria: ‘‘Todos os bens me
vieram com ela, e havia em suas mãos riqueza incalculável’’ (Sb 7,11). Que não
se perca nunca a esperança de um dia se fazer deste País um lugar de justiça,
liberdade e dignidade. Mesmo sabendo que ainda teremos muitas eleições com as
marcas dos “luzias” travestidos de “saquaremas”, quando chegam ao poder. Enquanto
a ética do “aventureiro” prevalecer sobre a ética do “trabalhador”, conforme
adverte o músico Erasmo Carlos, em Quem
vai ficar no gol? (2001), gestão política, nestes termos, significará: "Quando o salário aumenta, a voz do povo quer festejar/É mais uma graninha no fim do mês pra poder gastar/Só que pra ter o aumento o dinheiro sai de algum lugar/E seja de onde for, é o próprio povo quem vai pagar/Me avisa quem vai ficar no gol?/Quem vai ficar no gol?/Quem vai ficar no gol?".
* Professor da
Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos
Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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