quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"O PRIMEIRO AMOR É UM ETERNO TROPEÇÃO"

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Arrisco-me, com gosto, a fazer uma generalização: se fosse possível congelar nossas vidas e reuni-las em um único momento, como numa fotografia daquilo que fomos, e se, além disso, nos fosse possível escolher qual seria este momento, é certo que escolheríamos um momento de afeto. E se nos perguntassem qual a coisa mais importante de nossas vidas, escolheríamos aquela em que o amor é a maior presença. 

Em Mirna (2002), Nelson Rodrigues proferiu apimentada sentença: “não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Realmente, a alegria amorosa é propriamente “trágica”, pois traz à cena a experiência de magnitude, despistando o fim certo de tudo para o bem do instante-chama. O trágico aqui vem ao sabor de Nietzsche que, no livro O crepúsculo dos ídolos (1889), ressaltou com esperança ímpar: “dizer sim à vida mesmo nos seus problemas mais estranhos e árduos”. O amor constitui o espanto de ser no fascínio da relação. Em nós, vive algo que supera todas as aflições: a alegria. Só é alegre quem acredita em um regime sensível formado por uma intuição imediata do mundo. Viver no presente implica aceitar o primado da ação (o ato) sobre a esperança, o que equivale a trocar a passividade do estado de espera pela manifestação ativa da vontade de fazer. 

A citação declaração de Nelson Rodrigues critica a vinculação do amor com a inspiração suprema e o fim perfeito. Ilusoriamente, a felicidade expressa a pura esperança de um estado no qual não exista o sofrimento. A alegria, por sua vez, é o encantamento que pode ser experimentado, porque não se inscreve na ordem do absoluto nem das grandes expectativas, e sim na relatividade dos sentimentos que sobrevêm em meio ao desprazer ou ao sofrimento. A alegria de viver vem da coragem humana de instituir um estilo de vida para, nele, construir intimidades sem intimidações. A boca que diz “eu te amo” também diz “adeus”. Entre encontros e despedidas, amar suporta o meio dizer. Para tanto, faz-se necessário um adentrar-se na falta do outro. 

A psicanalista Inez Lemos, em Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (2007), apresenta a mesma pujança de Nelson Rodrigues, ao salientar que: “amar requer longa viagem pelo caminho da desilusão”. Assim como tudo o que é vivo e humano, o amor se define como um princípio de degradação e desintegração. Contudo, os seres vivos vivem de sua própria desintegração, combatendo-a pela regeneração. Heráclito dizia: “Morrer de vida, viver de morte”. Nossas moléculas se degradam e morrem, sendo substituídas por outras. Vivemos utilizando o processo de nossa decomposição para nos rejuvenescer, até o momento em que isso não é mais possível.  Acontece o mesmo com o amor, que só vive renascendo incessantemente. 

Em Amor, poesia, sabedoria (1997), o sociólogo Edgar Morin conceitua o amor como “o ápice da união entre loucura e sabedoria”. O mundo nos muda a cada segundo. Células morrem, outras nascem: fluxo em maturação constante. Mutatis mutandis: ninguém pode saber quem sou de verdade. Nem mesmo eu sou capaz de me conhecer plenamente. Por isso, ninguém pode amar-me pelo que realmente sou. Seres regidos por um inconsciente, somos atemporais, alógicos. Como achar, então, sentido em uma pessoa? Delírio. Ainda assim, a alegria acontece quando o inconsciente sopra esperança. Esperança no amor, mesmo diante do "trágico" script: felizes e infelizes para sempre.

Escrevo estas reflexões, saboreando o sublime livro Veracidade (2015), composto por Isabella de Andrade. Brasiliense, a escritora e jornalista nos envolve com sua prosa poética. A rosa dos ventos não se vai com a cinza das horas. Não há lições definitivas na travessia da alteridade sentimental. Nem acerto, nem erro, amar não é uma questão de desempenho. A perfeição tem um grave defeito: não inclui o ser humano. Assim, compreendemos melhor o dizer irreverente do modernista Oswald de Andrade: “a alegria é a prova dos nove”. Dez seria a perfeição; nove, por sua vez, o imperfeito, o inacabado. Porém, lacunas não são falhas, mas espaços para a evolução. Com Isabella de Andrade, fui educado sentimentalmente a reconhecer, com mais leveza e menos pesar, que a união e a separação constituem o amor por excelência. Trata-se da mais louvável tentativa em busca do sutil-visceral afeto que tempera nossa essência subjetiva. 

Estamos em construção e desconstrução permanentes. A vida existe, assim, para a morte, o que dá margem à renovação contínua – a vida é um festival do novo. Essa renovação é a fonte de toda beleza, mas também de toda alegria. E este sentimento, como já assinalamos, convive com a ausência de certezas. Enquanto o apego representa amar de mãos fechadas, o afeto significa amar de mãos abertas. Fiquemos com um belo exemplo pinçado da narrativa construída por Isabella de Andrade. Texto marcado por uma inesquecível batida liricamente cordial. “As noites são mais bonitas quando te lembro, Clarissa. É como se o vento quente e abafado lá de fora refrescasse meus cabelos com a mesma intensidade da brisa do mar. Dia desses eu achei um bilhete seu. Dizia: aproveita meu bem, o primeiro amor é um tropeção. Ainda tropeço pelas noites, Clarissa. É como se a vontade transformasse em instante toda a verdade de quando fecho os olhos. Acrescentei uma palavra em caneta colorida. O primeiro amor é um eterno tropeção”. 

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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