quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ALTA VOLTAGEM

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Muitos são os temas do fantástico, e um dos mais fascinantes é o tema do duplo, que se faz notar por uma personagem, e provoca nela reações emocionais imprevisíveis, pautadas no medo de ver a sua personalidade usurpada, de não se reconhecer como um ser autêntico e independente, capaz de assumir todo o controle sobre si mesmo. Sobre o duplo, tomando como base o texto O estranho (1919), de Sigmund Freud, passaremos à análise do duplo em “Do espelho”, poema de Carla Andrade, publicado em seu livro Voltagem, de 2014.  

A partir de Franz Kafka, no início do século XX, surgiu um fantástico que tem lugar no cotidiano, pautado nas relações do homem consigo e com o mundo que o cerca, tipo de estilo que vem ganhando cada vez mais espaço na produção literária contemporânea. Por razão da mencionada poesia de Carla Andrade, o fantástico muito se aproxima do maravilhoso e, principalmente, do estranho. Considerando esta observação, como se constitui o duplo no referido escrito da poeta e jornalista mineira?

O duplo, desta forma, origina-se necessariamente a partir de um indivíduo com o qual se identifica, adquirindo, no entanto, existência própria. Os traços de semelhanças são evidentes, mas nem sempre esse duplo goza de uma existência real, podendo ser apenas sugerido como fruto da imaginação de seu referencial (aqui entendido como o sujeito do qual se origina), inquietando-o. Os versos de Carla Andrade, contemplados neste estudo, oferecem um instigante clima de inquietação acerca da múltipla especulação identitária feita pela voz poética:

“Essa mulher no espelho/tem o mesmo olhar/abotoado da menina que roubava/as sombrinhas de cogumelos/das árvores e dos pastos./Esse olhar no espelho parece/bolinhas de gude/na escada rolante, olhos inconsequentes./Essa mulher no espelho/tem gosto de hóstia/ao lembrar/dos dedos de menina/a lambuzar o próprio sexo./Essa mulher é a mesma/que se atira nas raízes do seu colo/e se retira com nacos de barro/de obra inacabada./Esse reflexo no espelho é o/reflexo de tantos outros reflexos./Máscaras de pétalas/secas pelo tempo./Coragem./Pediu para o homem./Essa mulher ainda sou eu?”.

Nestes versos, a duplicidade se apresenta como aquele estado de uma consciência na qual se alojam, convivem e dialogam coisas às vezes até diametralmente opostas ou antagônicas, pondo a consciência do eu-poético no movimento pendular entre aceitação e/ou recusa à consciência e ao julgamento de si e do outro. O duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original, e diferente, até mesmo o oposto, dele. É sempre figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar), e provoca, no original, reações emocionais extremas. No citado texto de Carla Andrade, o eu-poético se apresenta com diversas caraterísticas que parecem ser apresentadas como definições pessoais. Nos versos derradeiros, entretanto, um ar de dúvida traz um maravilhoso mistério ao texto, além de uma saborosa estranheza, a ponto de nela o ápice da especulação identitária se apresentar como interrogação existencial em alta voltagem: “Essa mulher ainda sou eu?”.

Cabe salientar que ao duplo, portanto, não se confere estatuto de personalidade. Sua natureza se define na medida das reações que provoca no sujeito duplicado, trazendo a este uma reflexão acerca das particularidades de sua própria existência. O fascínio que o duplo provoca, como vimos, não é motivo de tranquilidade para o sujeito referencial, ao contrário, provoca-lhe reações emocionais extremas, em geral pautadas no medo do outro, no estranhamento inevitável e na angústia de ver sua personalidade usurpada. Nesse sentido, percebe-se o clima de estranhamento no desfecho do poema de Carla Andrade, cuja saga identitária do eu-poético se coloca em trânsito, na travessia existencial entre o Eu e o Outro. Por isso, o mérito do texto da poeta mineira se encontra também na filosofia dialética nele assentado: o caminho de construção da identidade é contínuo, não sendo, assim, projetado somente no afã dicotômico entre a autenticidade e a dissimulação pessoal. Prova também disso é o desfecho inacabado do processo identitário no poema em questão.

O comportamento deliciosamente ziguezagueante do poema apresenta um aspecto estranho. Sigmund Freud destaca, em O estranho (1919), que, por meio do duplo, algo familiar se converte em objeto de terror, em estranho: “O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a surpreendente evolução da ideia. Originalmente, o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. [...] O mesmo desejo levou os antigos egípcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto em materiais duradouros. Tais ideias, no entanto, brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando esta etapa está superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”.

Utilizando o linguajar freudiano, inicialmente, o duplo, no texto de Carla Andrade, se expressa como um ensaio de “segurança contra a destruição do ego”. Quando o aspecto indagador se agiganta no desfecho do poema, o duplo se oferece como “estranho anunciador da morte”. Sentimento este expresso no último verso do poema, considerando de maneira especial o advérbio de tempo “ainda”, que demarca uma possível transição entre o antigo e o novo ser: “Essa mulher ainda sou eu?”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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