quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ESCRAVIDÃO E SOCIABILIDADE CAPITALISTA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O processo de esvaziamento ético, de destruição do valor social das posturas moralmente recomendáveis, que está levando a uma situação difícil em praticamente todos os domínios da vida social brasileira, tem origem numa miríade de fatores. Entre eles, o próprio jeito cultural brasileiro de enfrentar desvios de conduta. Alguns desses temas, à medida que o debate avançar, devem se tornar alvos importantes. Gilberto Freyre, em seu estudo da nossa cultura patriarcal agrária, havia mostrado que vivemos um processo de formação moral da elite do País extremamente distorcido. Os filhos da Casa Grande tinham todos os direitos, inclusive os de serem absolutamente desumanos com os filhos da Senzala. Insensibilidade era uma palavra doce perto do que costumavam exprimir, em seus atos, os pequenos coronéis. Crueldade seria um conceito mais adequado. A respeito, o escravocrata Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, confidencia seu jeito perverso de ser: 

“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de côco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o; dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito, um – ‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘Cala a boca besta!’”. 

A ordem escravocrata, abolida formalmente em 13/05/1888, ainda governa a mentalidade ideológica das práticas culturais legitimadas por aqueles que se apoderam da governança nacional, incluindo também quem se espelham neles como modelos de conduta. Cristina Portes, em “Como viver sem sonhar?” (Estado de Minas, 30/06/1999), oferece parecer consistente e penetrante. Alerta a psicóloga e assistente social: “Na verdade não suportamos o reflexo dilacerante do olhar deste bebê escravo em cuja imagem está a composição dos quinhentos anos de opressão e violência da nossa história. Primeiro aconteceu com os índios. Violentados e sugados até a dizimação das espécies. Depois foram substituídos pelos negros que eram submetidos às mais horrendas atrocidades físicas e culturais e tratados como ‘peças’. Apesar da abolição da escravidão ter ocorrido em 13 de maio de 1888, outras formas de escravidão foram surgindo e crescendo com o prosseguimento do colonialismo econômico, e à medida em que o perpetuamos nos tornamos todos escravos deste modelo de capitalismo liberal. [...] Sair desta estrutura corrupta e execrável na qual estamos todos retidos dependerá só de nós. Detemos, mas mantemos guardadas, as chaves de nossas correntes, através da nossa inércia diante da usurpação generalizada que tomou conta do País. Falamos muito de cidadania, mas somos oprimidos e explorados, escravizados em nossa própria Pátria. Urge aprendermos o verdadeiro significado ‘do ressoar do brado retumbante de um povo heroico’ para que possamos mudar o curso desta história, o que só acontecerá na medida em que resolvermos iniciar nossa efetiva participação no processo político”. 

Na busca por entender melhor a desigualdade social no Brasil, o professor e doutor Adalberto Cardoso revisita a história social do trabalho na nação em “Escravidão e sociabilidade capitalista: um ensaio sobre inércia social”, no Le Monde Diplomatique, nº 30. Nele, algumas hipóteses sociológicas surgem, ao se descortinar o padrão de incorporação de trabalhadores na gênese da ordem capitalista no país. A marca profunda no imaginário e nas práticas sociais teve na escravidão de 400 anos seu lastro e perdura até hoje. Não é difícil, principalmente para os afro-brasileiros, constatar suas conclusões, qual sejam, uma hierarquia social de grande rigidez e muita desigualdade pouco vazada pelos não brancos; a dificuldade que gerações sucessivas tiveram, e ainda têm, para se livrar desse paradigma, que contribui para uma imagem depreciativa do povo; a construção de uma ética do trabalho degradado, já que só para escravos ou negros, além da indiferença moral das elites ante as carências da maioria. 

O pesquisador mostra que a história social do trabalho sofreu profunda revisão no Brasil nas últimas duas décadas, como resultado da exploração inovadora de antigos documentos, e de pesquisa estável em diferentes instituições acadêmicas, inclusive aquelas fora do eixo São Paulo-Rio. E essa revisão bibliográfica reconhece a escravidão como momento inicial da história do trabalho no país, cabendo ressaltar que antes da revisão se considerava a imigração europeia como tal, apesar de ocorrida centenas de anos depois. Adalberto Cardoso ressalta que “na sociedade escravocrata prevaleceu a orientação para impedir todo florescimento da vida social organizada, entre os escravos e libertos”, o que joga luz sobre a decisão de importar trabalhadores europeus e dar-lhes a condição negada aos negros, de uma gleba de terra para produzir. O estudioso, ainda, afirma que houve uma grande inércia estrutural que teceu o ambiente de sociabilidade capitalista no Brasil, que deve passar por um ordenamento social muito mais rígido em relação a outros países, com a desqualificação do negro e do elemento nacional como trabalhadores aptos à lide capitalista – o que a literatura tradicional sobre o tema não estava disposta a reconhecer, até que sopraram os ventos benfazejos dessa revisão.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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