quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A MARCHA DA INSENSATEZ

Marcos Fabrício Lopes da Silva*



Barbara Tuckman (1912-1989), historiadora americana, escreveu interessante livro intitulado A marcha da insensatez (1984). Nele, a historiadora defende a tese de que os governantes, por um acaso inexplicável, têm a tendência histórica de decidir insensatamente. Segundo a autora, para haver a decisão insensata, é preciso, em primeiro lugar, que o governante tenha mais de uma alternativa como opção; é preciso também que ele tenha pleno conhecimento das consequências de cada opção e, finalmente, é necessário que ele esteja investido do poder para decidir. Cumpridas essas formalidades, diz ela, se ele decidir pela pior opção ele estará decidindo de forma insensata.

A marcha da insensatez não é apenas um registro dos livros de História. Ela continua a ocorrer. Todos os dias. Quando nossos políticos votam projetos em interesse próprio, algo tão comum, nada mais estão fazendo do que envenenar a crença da população na democracia. Acompanhamos especialmente as autoridades serem acometidas de um estranho paradoxo: tomar atitudes totalmente contrárias aos interesses da coletividade e, em última análise, a si mesmos – ainda que elas possam parecer o contrário. Em termos globais, considerando principalmente o viés ocidental, a razão tecnocrática vem chefiando a marcha da insensatez. Sob o manto cinzento da razão pura, gestores confundem pessoas com coisas, vidas com números, sofrimento com inação. 

Política é uma atividade que exige ação e reflexão, razão prática e razão pura, qualidades que se repelem, mas que, no homem público, devem convergir. São bem raros os que conseguem essa convergência. Contudo, em não conseguindo bem administrar razão pura e razão prática, acabamos optando pelo exercício quase exclusivo de uma sob pena de não realizarmos nenhuma. A razão pura conhece, especula; a razão prática decide, ordena. Há aqueles que nascem para se conformar ao mundo e há aqueles que nascem para mudá-lo. Existem aqueles que acreditam que homens devam ser governados pela economia e existem aqueles que acreditam que a economia deva ser governada pelos homens. Aquele que desenvolve mais a razão pura atua sobre a realidade enquanto corifeu da razão instrumental, servil, a qual, nos nossos dias, carrega a crença de que as decisões políticas devam ser entregues à lógica dos técnicos, isto é, pessoas que operam em nome dos meios, sem se ocuparem com os fins. Numa palavra: todos os negócios humanos e sociais, inclusive os de ordem Ética e os de Estado, devem ser confiados aos técnicos porque eles podem, por serem detentores do saber específico, notadamente o econômico, apontar o que é justo, o que é bom, em síntese, o que é o bem comum. 

As autoridades estão de posse de um capital técnico prodigioso, porém estão defasadas em matéria de ética política consistente. Lamentando a violência contra os atropelados pela marcha da insensatez, o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973) desabafou: “Se encontras num caminho um menino roubando maçãs e um velho surdo com um acordeon, recorda que eu sou o menino, as maçãs e o ancião. Não me magoes perseguindo o menino, não batas no velho vagabundo, não atires ao rio as maçãs”.Conforme alerta o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, em palestra realizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 26/08/2015, o melhor negócio do mundo se chama generosidade, em que todos ganham em matéria de vida em plenitude: “Liberdade não se vende, se ganha fazendo algo pelos demais”.  

A desordem das Nações está instalada: menos de 20% da população têm acesso a todos os bens e 80% vivem na penúria. Com a derrocada do comunismo e sob o terrível impacto de uma única superpotência, os Estados Unidos, o neoliberalismo foi adotado pelos ricos e imposto ao resto do mundo. O mercado é o novo deus, fazendo da sociedade humana um simples acessório do sistema econômico. O filósofo e cientista João de Freitas ressalta que se o mercado se tornar uma religião seria a do bezerro de ouro, conduzindo a mais ridícula das tiranias, a da riqueza. A respeito, o economista Roberto Campos (1917-2001) proferiu, certa vez, uma declaração de alto quilate provocativo: “Hoje eu estudaria biologia molecular. A economia é apenas a arte de alcançar a miséria com o auxílio da estatística”.

A marcha da insensatez também se alimenta de democracias infelizes em que a incultura dos cidadãos e o egoísmo voraz das elites obstam o perene desenvolvimento e tornam irrespirável o ambiente. Sob o excelente pretexto de aperfeiçoar a poesia brasileira, o jornalista e escritor piauiense, Mário Faustino (1930-1962), nos deixou uma bela receita de como construir um país melhor: ‘‘Precisa de dinheiro. De uma estrutura econômica estável como alicerce. Precisa de que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editores, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia realmente consiga levantar o povo’’. 

O Brasil até hoje foi governado com o centro das atenções voltado mais para o capital. Chegou o momento de equilibrá-lo com o trabalho. Gustav Radbruch (1878-1949), filósofo do direito alemão, gostava de repetir a frase: “a empresa não sou eu, somos nós”. Nela não devem existir empregados e empregadores, mas cidadãos do trabalho. Desarticular a marcha da insensatez local e globalmente pede de todos nós razão para distinguir os melhores meios para atingir um determinado objeto, e ética para saber se os meios são legítimos e os objetivos são bons.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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