sexta-feira, 13 de novembro de 2015

PEDAGOGIA DA QUALIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Estamos em plena sociedade do conhecimento. Do ponto de vista do mercado, interessa apenas a qualidade formal, ou o manejo do conhecimento como ferramenta de produtividade. Mas do ponto de vista da cidadania, interessa, antes de mais nada, a qualidade política, ou seja, a capacidade de se fazer sujeito crítico e atuante, incluindo a necessidade de submeter o mercado aos direitos da cidadania. O conhecimento, mesmo sendo talvez o filho predileto e maior da humanidade, tem sido, como regra atrelado ao poder e, hoje, serve sobretudo à lógica do mercado neoliberal. O neoliberalismo é a colonização elevada ao quadrado. A educação precisa, por sua vez, saber resgatar, de um lado, a potencialidade enorme do conhecimento, e, de outro, sua inserção ética. Ou seja, combinar qualidade formal e política.

Para um observador superficial, a verdade científica não está sujeita à dúvida; a lógica da ciência é infalível e se, por vezes, os sábios se enganam, isso acontece por terem desprezado a lógica científica. A busca do conhecimento, com humildade e sem soberba, vem contribuindo para avanços escolares que saibam melhor lidar com o cenário de incertezas, uma vez que ter convicção significa cair na tentação da certeza doutrinária, o que impede a formação e a consolidação do pensamento e da sensibilidade arejados. A respeito, torna-se emblemática a história contada por Dante Alighieri, em Convívio III, XI (1304-1307):

“Pitágoras, ao ser interrogado se se considerava sábio, negou a si mesmo essa denominação e disse de si que não era sábio, mas amante da sabedoria. E daqui surgiu que qualquer estudioso da sabedoria fosse chamado ‘amante da sabedoria’, isto é, ‘filósofo’; pois em grego ‘philos’ equivale a ‘amor’ em latim, e por isso dizemos ‘philos’, quase amor, e, 'sophos', quase sábio [...]. Filosofia não é outra coisa senão amizade à sabedoria ou ao saber, porque [...] gera em cada um o desejo de saber”. 

Clarice Lispector, em artigo publicado no Jornal de Brasil, de 02/11/1968, propõe uma distinção conceitual entre inteligência e sensibilidade inteligente, favorecendo essa segunda virtude como sendo especial em matéria de juízo de valor qualificado: “As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundido inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho. E, apesar de admirar a inteligência pura, acho mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade inteligente [...]. Suponho que esse tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, como um dom, pode ser abafado pela falta de uso ou aperfeiçoar-se com o ouso. Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa constantemente esse dom. O resultado então é que ela tem o que eu chamaria de coração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os outros como um verdadeiro radar”.

Enquanto governança e sociabilidade, como promover a formação e a consolidação de escolas que incentivem o emprego da sensibilidade inteligente como conduta comportamental exemplar? Faz-se necessário, primeiramente, conceber as instituições de ensino e aprendizagem como unidades epistemológicas que possam nos encorajar eticamente enquanto lutadores colaborativos em prol do bem-estar coletivo. É preciso sentir o drama social com tanta intensidade para viver de coração perplexo frente às grandes injustiças que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. Para tanto, uma escola de verdade necessita ter como pressuposto básico o exercício constante da pedagogia da qualidade como horizonte ideal e caminhada prática. 

Na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (maio/agosto, 1987), Eduardo Portella, crítico literário, professor e ex-ministro da Educação e Cultura, cunhou o termo “pedagogia da qualidade” para o Brasil ultrapassar o patamar conservador da “modernidade truncada”. A respeito, Portella sublinha que só a qualidade de ensino e aprendizagem, em termos democráticos, oferecerá condições materiais e culturais para que verdadeiros potenciais de genialidade e inventividade possam aflorar e se manifestar em todas as classes. Para tanto, o país precisa concentrar seus esforços em prol da cidadania, “não uma cidadania contemplativa, essa cidadania das grandes comemorações cívicas, mas uma cidadania ativa e criativa, uma cidadania crítica”.

Portella pensa, portanto, a educação como suprema expressão da alteridade sincera e respeitosa: “Para que possamos, portanto, chegar a esse exercício crítico da cidadania, precisamos, evidentemente, passar pela qualidade, mas passar pela qualidade plantada enraizadamente. Precisamos evidentemente pensar o compromisso pluralista ou o reconhecimento da diferença. Há também uma tendência, não só no conhecimento, mas nas formas de convivência, de liquidação do outro. Nós somos uma cultura, fundamentalmente uma cultura do mesmo, e como cultura do mesmo nós exercemos autoritariamente o poder do mesmo sobre o outro, o poder do idêntico sobre o diferente; tanto que se fala muito, nas políticas oficiais, em identidade nacional. Eu, por exemplo, agora publiquei um pequeno prospecto em que falo em diferença nacional; estou realmente muito mais preocupado com a diferença nacional do que com a identidade nacional”. Afinal de contas, um aprendiz da diferença nunca será um professor da indiferença. Convém sempre acreditar na educação como a vitória sublime da emancipação sobre a grotesca repressão. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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