sexta-feira, 13 de novembro de 2015

OVÍDIO E A ARTE DE AMAR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Chamamos eco a repetição de um som pela reflexão num corpo situado a certa distância. A palavra tem em seu berço no grego ekhó, mas o termo, na verdade, surgiu na mitologia. Era o nome de uma ninfa pela qual Júpiter teria se apaixonado, o que não agradou a Juno, a mulher do rei dos deuses. Enciumada, ela teria transformado Eco num rochedo. Há quem defenda que a ninfa se apaixonou pelo belo Narciso — que a rejeitou por amar somente a si próprio. Eco escondeu-se num bosque e passou a viver vida solitária. Seu amor e sofrimento a transformaram em pedra. Só lhe restou a voz, cujo som ressoa eternamente. O amor de Eco por Narciso inspirou poetas como Ovídio, e sua forte intensidade tem sido sopro para acesos casais ao longo dos séculos...

Em Garota encontra garoto (2008), a escritora escocesa Ali Smith evoca Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), o muito louvado poeta romano dos amores, para narrar a atenção de jovem por ativista de aparência andrógina. O ativista político/artista das ruas é um camarada chamado Robin Goodman. Quer dizer, uma camarada chamada Robin Bomhomem. Sim, uma guria. Anthea fica desconcertada: uma guria? “Ele era o menino mais lindo que eu já tinha visto na vida. Mas parecia na verdade uma menina”, escreve Ali Smith, fazendo as vezes de Anthea, que corrige o pensamento: “Ela era o menino mais lindo que eu já tinha visto na vida”.

Ali Smith fecha questão ainda a meio caminho do fim, quando deixa Robin se apresentar por si mesma. Afinal, menino ou menina? “A palavra exata para mim, diz Robin Goodman, é eu.” Robin explicitamente assume sua sexualidade e se apresenta nas ruas da cidade, ao assinar seus grafites como Ifisol. Assinatura que Anthea rapidamente identifica pelos muros por onde passa. Um nome andrógino. Ifisol remete a Ifis, uma personagem das Metamorfoses, de Ovídio. Interrompe Ali Smith a narrativa para apresentar a história de Ifis. Conta que, na ilha de Creta, a garota Ifis foi criada pela mãe como garoto a infância inteira, em obediência aos desígnios de um oráculo. Mas eis que o jovem Ifis está para se casar com Iante, que não faz a menor ideia do que se passa na vida íntima do noivo. Na iminência do desastre, Ifis acorda homem num estalo. A escritora escocesa busca essa imagem de Ovídio para entregar uma singela ode ao amor que não escolhe gênero. 

Ovídio escreveu, há 19 séculos, Arte de Amar (Ars Amatoria). Ele declamava, pelas ruas de Roma, os encantos da sedução, as dores do ciúme e a alegria do sucesso amoroso. O livro ensina fórmulas de sedução e mostra a confiança e a alegria que nascem do sucesso no amor. Suas idéias passaram a influenciar, principalmente, os jovens. As guerras civis haviam posto fim à República romana e o novo dono do poder, o imperador Augusto, queria restabelecer a moralidade dos velhos tempos. Ovídio foi acusado de corrupção moral. Argumentou, para se defender, que escrevia para cortesãs, não para as “mulheres honestas”. Não deu certo. Foi punido por falar e escrever sobre amor. Numa noite de dezembro dos primeiros anos da era cristã, o poeta foi levado de Roma para o exílio em Tomes, na atual Romênia, às margens do Mar Negro. A leitura da obra de Ovídio só voltou a ser permitida no fim da Idade Média.

Para Ovídio, o amor é uma técnica que pode ser ensinada. É o que propõe em Arte de Amar, uma espécie de manual do ofício da sedução, da infidelidade, do engano e da obtenção do máximo prazer sexual, elaborado a partir das experiências vividas pelo poeta. Na avaliação do célebre poeta latino, o amor é acima de tudo o desejo. Aliás, o verbo latino amare significa antes ser amante de alguém, e a Arte de Amar é a coletânea onde se encontram os conselhos mais eficazes para obter os favores de uma mulher. 

Ovídio apresenta-se como um autor singular na medida que reivindica um prazer igualmente partilhado entre homem e mulher quando do ato sexual. Ele quer ignorar essa dicotomia de receber ou dar prazer que estão ligadas a dois fatores: dominação e superioridade, e subserviência e inferioridade. Em Arte de Amar, não há essa divisão entre os gêneros: o homem visto como o “dominante” e a mulher como a “dominada”. O poeta latino nos apresenta o ato de amor como uma comunhão de dois corpos tentando se dar prazer. A mulher representada na Arte de Amar não é um mero receptáculo, um meio de satisfação individual do homem; ela deixa de sê-lo para tornar-se um ser de desejo, que busca, junto com o homem, o direito de partilhar o prazer.

Face ao exposto, eis os versos ilustrativos de Ovídio: “Mas as velas não abras mais do que a tua amiga/Não a deixes para trás e que ela se antecipe/à tua marcha também não lhe concedas./Que a meta seja atingida ao mesmo tempo./São guindados ao cume da volúpia/o homem e a mulher quando vencidos/ficam na cama, sem forças, estendidos./[...]/ Sinta a mulher que os deleites de Vênus/Ressoam nos abismos do seu ser;/e para os dois amantes/seja igual o prazer”.

Revela Ovídio que amar é experimentar a situação-limite da entrega mútua: “Os prazeres são mais vivos se conhecem o perigo”. Com o tom epicurista, a voz poética, ao longo de Arte de Amar, prioriza a busca de alegrias e prazeres para a vida. Muito bem sintetizou, com espirituosidade, essa filosofia de vida o músico Zeca Baleiro, em Babylon (2000): “Baby I’m so alone/Vamos pra babylon/Viver a pão-de-ló e moet chandon/Vamos pra babylon/Vamos pra babylon/Gozar sem se preocupar com amanhã/Vamos pra babylon/baby baby babylon/[...]/Vem ser feliz ao lado desse bon vivant/Vamos pra babylon/Baby baby babylon/De tudo provar champanhe caviar/Scotch escargot rayban bye bye miserê/Kaya now to me o céu seja aqui/Minha religião é o prazer”. 

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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