sexta-feira, 13 de novembro de 2015

PAPO FURADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Salomão Sousa, em Momento crítico (2008), alerta: “vivemos num processo cultural que exige mais descobrir a inteligência e encobrir mais as nádegas”. Nem só de nádegas a declarar vive o axé music. Existe neste ato cultural revelações de pensamento inteligente que se encontram nos autos da ciência política brasileira. Refiro-me à canção Papo furado (1985), composta por Reni Veneno e Marquinhos. Sucesso na voz do Olodum, o samba reggae apresenta a seguinte disposição: 

“Se você pensa que com as suas palavras/Você já ganhou meu voto,/Simplesmente se enganou/Olha que eu não como nada disso,/Você não tem compromisso,/Sai daqui seu traidor/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Falei, falei, falei/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Você foi na favela/Contando mil balelas/Provou da minha panela/Pensando em se eleger/Depois dos quatro anos/De pernas pro ar ficar/Estando aposentado/De mim não vai se lembrar/Falei, falei, falei/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Você me enganou/E quer me enganar/Se pisou na bola, não vai mais pisar”.

2016 vem chegando e como em todo ano eleitoral, a cantilena é a mesma: muitas promessas e pouco conteúdo da maioria dos candidatos, além da pouca capacidade de grande parte do eleitorado para escolher quem melhor vai representá-lo nos quatro anos seguintes ao pleito. A reflexão séria sobre os grandes desafios do contexto atual não deveria estar ausente no debate político entre candidatos e entre eleitores. Seria uma grande pena se o tempo fosse gasto com acusações entre os candidatos – como já se vê país afora –, ou para apresentar projetos vagos e irrealizáveis, só para encantar os eleitores, que têm todo o direito de conhecer as propostas dos que pleiteiam cargos para enfrentar as grandes questões pendentes, como infraestrutura, qualificação profissional, redução perene da pobreza, distribuição de renda, violência, políticas urbana e habitacional, saneamento básico, mais recursos para a educação, exploração sustentável dos recursos naturais, defesa da vida e da dignidade da pessoa, além da diminuição da perversa carga tributária. Para votar conscientemente, é necessário conhecer os candidatos e o que eles pensam sobre esses e outros itens e como pretendem enfrentá-los caso eleito.

Voto não tem preço, mas tem consequências. Por isso, não deve ser uma espécie de cheque em branco confiado a um desconhecido. É um ato de responsabilidade com o Brasil. Por isso mesmo, a política tem uma dimensão ética e deve nortear-se por alguns critérios fundamentais durante todo o processo eleitoral. É preciso avaliar partidos e candidatos, suas propostas, seu currículo e seu perfil ético. Contrariamente, poderíamos apoiar, com o voto, aqueles com propostas contrárias à nossa consciência, somente porque nos prometem alguma vantagem. O ano eleitoral, pois, pode ser um período de intensa formação da consciência ética e cívica dos cidadãos, em especial, daqueles que participam da vida política, para que atuem sempre a serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum, sabendo que, por meio do voto, fará crescer e amadurecer a vida democrática do Brasil.

Distantes de prestar serviços em matéria de informação cidadã, os horários políticos mais se aproximam do formato novela-minissérie. Qual é o problema dessa escolha distorcida? Dad Squarisi, em “Alhos e bugalhos” (Correio Braziliense, em 22/01/2002), explica: “A novela e a minissérie são obras de ficção. Nelas impera o jogo do finge-finge. O autor finge dizer a verdade. O receptor finge acreditar. No pacto da mentirinha, não há compromisso com a verdade. Só com a fantasia. Daí acreditarmos em chapeuzinhos vermelhos, lobos maus, narizinhos, capitus e bentinhos. A questão é outra. Falta a boa parte dos brasileiros a informação cidadã. Democratiza-se a escola, mas não se democratizam o saber e a crítica. Muitos têm a TV como única fonte de conhecimento. Para manter o espectador cativo, os programas jornalísticos tornaram-se shows. Fica difícil distinguir o real do ficcional”.

A crise da água no Brasil mostra como os gestores vem maltratando o fazer político, o que prejudica consideravelmente o funcionamento administrativo da sociedade. O racionamento veio pela incompetência acumulada, a defasagem tecnológica, a farsa dos planejamentos maquiados e a eterna capacidade de adiamento/culpa da ‘‘gestão anterior’’. Serviu, ao menos, para uma forte consciência civil sobre a escassez de um bem fundamental como a água. Alertou para a emergência de usar energia sem o delírio do consumo desvairado. 

Poupamos por educação ou pela pressão do papai-Estado punidor? Deveríamos continuar suaves no uso, em treinamento, para óbvias crises futuras que virão, pois a penúria da infra continua. A festa das águas, vindas pela chuva, nos leva a mais uma cascata: como pedras que rolam não criam limo (justificativa para o rock dos Rolling Stones), águas paradas criam dengue. As águas — como a política — apodrecem quando não circulam. Luxo é o bem que perdeu o fluxo. E a cascata do ‘‘todos devem fazer a sua parte’’, enquanto o Estado se omite, desemboca na pior das cascatas da semana: as medidas contra a violência. Como se a violência fosse um efeito episódico. Violência não nasce em árvores, mas tem raízes. Segurança para todos e não só para quem pode comprar coletes. Não dá para blindar a rua quando blindado, impenetrável e rígido está o caráter.

A cada eleição, cresce a sensação de “papo furado”. Será que este país nunca ficará limpo? Há aqui sempre um mar de lama! Enquanto o errado estiver dando certo para uma minoria próspera, a maioria aflita continuará em maus lençóis. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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