sexta-feira, 13 de novembro de 2015

OS MONSTROS NASCEM ANJOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Parece natural o nosso amor pelas crianças, entretanto, nem sempre esse sentimento aparece na ordem dos tempos. Pelos três evangelhos sinóticos (Mateus 19,13-15; Marcos 10,13-16; e Lucas 18,15-17), sabemos o apreço especial que Jesus tinha pelas crianças: “Alguns traziam crianças a Jesus para que ele tocasse nelas, mas os discípulos os repreendiam. Quando Jesus viu isso, ficou indignado e lhe disse: ‘Deixem vir a mim as crianças, não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele’. Em seguida, tomou as crianças nos braços, impôs-lhes as mãos e as abençoou”.

Revela Philippe Ariès, em História social da criança e da família (1973), que a infância é uma invenção moderna. A partir do fim do Antigo Regime, momento de triunfo do individualismo de nossa cultura, as crianças são de fato amadas porque se tornaram os depositários de nossas esperanças frustradas de felicidade. Nós as amamos como o sonho irresistível do que não conseguimos vir a ser. Não estranha então que Freud nos dê esta explicação do amor moderno pelas crianças: nós as amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida já nos recusaram. Delas, esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi, aliás, a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos.

Não à toa a identificação da voz poética de Gonzaguinha com as crianças. Ao especular sobre os sentidos da vida, o artista, na música O que é? o que é? (1982), prefere acompanhar a leveza lúdica conferida ao tema pela meninada: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças/É a vida, é bonita, é bonita/Viver e não ter a vergonha de ser feliz/Cantar, e cantar, e cantar/A beleza de ser um eterno aprendiz/Ai meu Deus, eu sei (eu sei)/Que a vida devia ser bem melhor/E será, mas isso não impede que eu repita/É bonita, é bonita, é bonita”. 

Olhamos para as crianças como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos. Os adultos fizeram das crianças a caricatura da felicidade impossível: vestidas de feliz, isentas das fatigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupadas. Isso é suficiente para que o sofrimento de uma criança seja, aos nossos olhos, atroz. Após marcar o milésimo gol de sua carreira, Pelé, em 19 de novembro de 1969, pediu solidariedade: “Pensem no Natal. Pensem nas criancinhas. [...] Volto a lembrança para as criancinhas pobres, necessitadas de uma roupa usada e de um prato de comida. Ajudem as crianças desafortunadas, que necessitam do pouco de quem tem muito. (...) Pelo amor de Deus, o povo brasileiro não pode perder mais crianças”, alertou o Rei do Futebol.

Face ao exposto, o que o Governo brasileiro está fazendo pela educação de nossas crianças? Apesar de registrar aumento nos gastos públicos com educação nos últimos anos, o Brasil tem ainda um longo desafio pela frente: equiparar os recursos aplicados nos ensinos superior e básico. Segundo informa o relatório Education at a Glance, divulgado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as instituições públicas de ensino superior, considerando a realidade nacional, gastam 4 vezes mais por aluno do que as escolas de ensino fundamental e médio, onde encontram-se 84,5% dos estudantes brasileiros. A educação recebe 19% dos investimentos do país, enquanto a média dos países da OCDE é de 13%. Entretanto, o investimento por aluno, no Brasil, se encontra na faixa de US$ 2.985 (11.254 reais), o equivalente a um terço da média dos 34 países integrantes da OCDE, que é de US$ 8.952 (33.751 reais).

Já alertava o jornalista Dídimo Paiva, no artigo “Ensino chato, culpa do governo” (Estado de Minas, 24/12/2000), que “a raiz da crise é conhecida: perdeu-se a finalidade principal do ensino fundamental (antigo curso primário) que, como estabelece o artigo 205 da Constituição, deve visar ‘o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’”. O documento, intitulado O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a Aprendizagem (2014), produzido pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), formado por estudiosos de Harvard, da Faculdade de Medicina da USP e da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, mostra que o investimento nessa etapa tem impacto positivo não só no desempenho acadêmico, mas influencia toda a vida, gerando maior renda, melhor saúde e até menor criminalidade. A publicação se destaca pela consistência científica de seus argumentos: “O desenvolvimento cerebral que permitirá a aprendizagem ao longo da vida se inicia na gestação e tem especial relevância durante a primeira infância. [...] Por meio de um processo chamada ‘sinaptogênese’, o número de sinapses entre os neurônios se multiplica, chegando a 700 novas conexões por segundo, em algumas regiões cerebrais, no segundo ano de vida”.

Comparando com a planta de uma construção, a “Pátria Educadora” prefere promover o teto a assentar a base. Não priorizar investimentos em educação, desde a tenra idade, significa colaborar para o processo de “poda sináptica”. As sinapses mais utilizadas se fortalecem e carregam informações de forma mais eficiente, enquanto as que não forem estimuladas pelo processo de ensino e aprendizagem gradualmente enfraquecem e desaparecem. Enquanto isso, nosso Congresso Nacional prefere rasgar o Estatuto da Criança e do Adolescente para promover a redução da maioridade penal. As “autoridades” solenemente ignoram as realidades mais substantivas, atropelando-as por conta de um instinto carcerário que parece socialmente predominar. Acontece que “os monstros nascem anjos”, como bem salienta o poeta Wanderson Adriano Marcelo.
  
* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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