sexta-feira, 13 de novembro de 2015

DILEMAS CIENTÍFICOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A diferença entre a argumentação científica e a filosófica se dá por um acesso diferente à corporeidade: a primeira leva em consideração o corpo como corpo-coisa e o mesmo pode-se dizer da mente – o cérebro –; a segunda tenta descrever o corpo a partir do sentir-se corpo, do perceber-se como eu corpóreo. A filosofia tem um acesso diferente ao sujeito – entendido como unidade de corpo e mente – em comparação com as ciências positivas: tenta descrevê-lo partindo da experiência que o eu tem diretamente de si, da percepção que tem de si como eu-corpóreo. Por essa aproximação diferente, pode-se dizer que a ciência reconstrói a mente e partir da estruturação da matéria, a filosofia descreve o sentir-se matéria – um corpo, coisa do mundo no mundo – no interior da vida da mente, tenta atingir o sujeito a partir de si mesmo como consciência em ato. 

Estamos vivendo na era do conhecimento, uma época precedida pelas “ondas” agrícola, industrial e da informação e na qual é incessante a busca por novas formas e maneiras de tratar este valioso recurso. Os conhecimentos tácito e explícito conjugados com ideias, valores e emoções possibilitam a visualização de novas realidades e cenários que permitem a concepção de maneiras diferentes de se interpretar e de se fazer as coisas, gerando contradições e interrogações que conduzem a novos conhecimentos. Quanto mais distante estiver da “ordem do discurso”, melhor a ciência se sairá enquanto ofício especulativo. Michel Foucault, em aula inaugural no Collège de France (02/12/1970), com razão, esclarece: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.

Atuar como cientista significa descontruir os procedimentos de exclusão que interditam o conhecimento ampliado do saber. A respeito, muito nos serve o alerta feito por Michel Foucault sobre as tensões e intenções subterrâneas da linguagem: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Enquanto investigação constante, o fazer científico, ao ignorar a polissemia da linguagem, se esconde no manto da neutralidade argumentativa, valorizando, em demasia, o princípio do distanciamento avaliativo. O envolvimento afetivo do cientista em relação a sua causa de estudo sofre com os estigmas positivistas, que desqualificam a subjetividade, acusando-a de agente contaminador que prejudica a exatidão como exame criterioso do real. Entretanto, vale a pena lembrar que a palavra, enquanto núcleo do pensamento científico, apresenta sempre um efeito bumerangue em matéria de entendimento complexo: legitimamente coexistem no mundo, pelo menos, “dois quereres” – as vontades do lançador e do lançado. 

O ser humano é aquele que consegue inteligir a realidade em seus diferentes níveis. A palavra cria mundos, é ativa e ativadora. Com a palavra criamos o passado, o presente, o futuro. A palavra tem o poder de ‘arrumar’, ‘organizar’ nossa percepção e expressá-la. A palavra dá forma à realidade. Dá realidade à realidade. Dotando a realidade de sentido, a palavra torna o mundo menos terrível e assustador. A solidão das coisas é o preço que o mundo sem sentido, sem razão de ser, pagaria, na ausência do ser falante (do homo loquens) que viesse admirar-se com as coisas, chamá-las com diferentes nomes, humanizá-las. 

Trago a imagem do queijo suíço para enfatizar a natureza lacunar do fazer científico, assentado entre limitações e espaços para evolução. Entre o revelado e o silenciado, a qualidade científica vem sendo prejudicada pela sobrecarga informacional, pela fragmentação do conhecimento e pela rápida evolução da tecnologia da informação. Outro fator que constrange o trabalho científico é a vaidade presente no campo científico. Von Steisloff, em El experto (2011), chama nossa atenção para os fenômenos do charlatanismo e do narcisismo que afetam a credibilidade e a humildade como valores a serem cultivados pelos cientistas. O escritor confabula uma conversa entre a sede de grandeza de Monfort e a fome de sabedoria de Einstein. Critica-se, neste fabuloso livro, a criação pseudocientífica de teorias infundadas e desligadas da realidade. 

Monfort busca impressionar seu interlocutor com a sua Teoria Geral: “– Ora doutor Einstein! É evidente que é uma grande bobagem essa lorota de que as fontes de água têm um limite e, a se manter as atuais práticas de uso, poluição e desperdício, a humanidade vai também desaparecer pela falta desse líquido!/– E não pode ser verdade, Monfort, que as águas vão se acabar?!/– Não! Nunca doutor Einstein, a quantidade de água é uma constante planetária!”. Para assombro de Einstein, o estudante de pós-graduação no grau de Mestre em Engenharia Ambiental lança absurda tese, atropelando, na contramão irresponsável, o princípio da sustentabilidade: “O elemento água, professor, desde a criação do planeta é o mesmo, não se presta e não está sujeito a renovação ou recriação. Não surgem novas águas por aí, têm sempre a mesma quantidade fixa. São eternas; nunca se extinguem!”. 

Nas linhas e entrelinhas da obra, Von Steisloff adverte sobre os perigos do fazer científico, quando o pobre modelo Monfort prevalece sobre o nobre paradigma de Einstein, que se encontra disponível neste exemplo pinçado das saborosas páginas de El experto: “Você mesmo tem de explodir as comportas mentais; deixar que a correnteza de ideias revolucionárias inunde o vale da unanimidade científica, sufocando as verdades cristalizadas". Esperteza demais, inteligência de menos – assim não caminha a ciência. 

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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