sexta-feira, 13 de novembro de 2015

BRASIL CABEÇÃO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Em crônica publicada no jornal Zero Hora, de 19/05/2012, a jornalista porto-alegrense Cláudia Laitano disse algo superimportante: “realmente surpreendente seria se os estudantes brasileiros fossem brindados com um programa de educação tão sério e eficiente que algum gaiato resolvesse apelidar de ‘Brasil cabeção’. Carinho, elas querem é da família. O que as crianças miseráveis do Brasil precisam, do Estado, é menos amor e mais confiança”. Em um país com mais de 70 milhões de jovens com menos de 18 anos e onde a vulnerabilidade de crianças, expostas à pobreza e a todo tipo de iniquidade, é recorrente, o retrato do abandono dos pequenos brasileiros é visível e perturbador na maioria das cidades. É muito comum observar centenas de crianças soltas pelas ruas, totalmente desprotegidas e entregues à sorte. Desse imenso contingente, as crianças negras são as que têm menos chance de escapar da pobreza. 

No semiárido, segundo o Unicef, órgão das Nações Unidas para a Infância, de cerca de 14 milhões de crianças e adolescentes, 70% são classificados como pobres. Dentro do chamado Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), assumido pelo Estado, o Brasil ainda está longe de atingir as metas propostas para essa parcela da sociedade. As crianças pobres têm o dobro de chance de morrer, em comparação com as crianças das classes mais ricas. Essa situação agrava mais a questão da escolaridade.

Uma em cada quatro crianças permanece ainda fora da escolaridade. Nas regiões mais pobres, somente 40% delas terminam a educação fundamental. No Brasil, segundo estatísticas de 2008, a cada dia ocorrem, em média, 150 casos de violência psicológica e física envolvendo menores; nesses números estão incluídos os casos de abuso sexual contra meninas. Ocorre, no entanto que, grande parte dos casos contra os menores ocorrem dentro do lar e envolvem os parentes próximos. Os números poderiam ser ainda mais graves, se todas as ocorrências dentro do lar fossem devidamente denunciadas. 

O Anuário Brasileiro da Educação Brasileira (jun./2015) mostra que mais de 50% das crianças chegam analfabetas ao fim do 3º. ano do ensino fundamental. E mais: 93% não tem fluência em matemática. Encaminhamos mais alunos à escola, mas não os preparamos para que estejam aptos à cidadania e ao mercado de trabalho. Antonio Machado, na coluna “Brasil S/A” (Correio Braziliense, de 08/11/2015), critica, com razão, esse quadro catastrófico: “a educação cresce em quantidade e recursos, mas sem qualidade, enquanto a economia fecha empregos. Ao volta a criá-los, não encontrará o que a tecnologia já passou a demandar. É a tragédia circular, refletida em estudo da organização francesa Youthnomics junto a 64 países sobre onde jovens de 15 a 29 anos têm mais oportunidades de prosperar e ser feliz. O Brasil é o 60º. dessa lista, filtrada por 59 critérios, da qualidade da educação ao nível de emprego, da liberdade de costumes à realização pessoal”.

Gilberto Dimenstein, no livro O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os Direitos Humanos no Brasil (1994), categoricamente ressalta: “A criança é o elo mais fraco e exposto da cadeia social. Se um país é uma árvore, a criança é um fruto. E está para o progresso social e econômico como a semente para a plantação. Nenhuma nação conseguiu progredir sem investir na educação, o que significa investir na infância. E isso por um motivo bem simples: ninguém planta nada se não tiver uma semente. E as árvores doentes não dão bons frutos. A viagem pelo conhecimento da infância é a viagem pelas profundezas de uma nação”. Considerando a infância como a maior vítima da violência, observa-se que a cidadania brasileira, garantida nos papéis, não existe de verdade para todos. Dimenstein chama esse triste fenômeno de “cidadania de papel”. Salienta, com precisão, o jornalista: “Estou convencido de que a infância, frágil como um papel, é o mais perfeito indicador do desenvolvimento de uma nação. Revela melhor a realidade do que o ritmo de crescimento econômico ou a renda per capita”.  

No livro Amanhecer Esmeralda (2005), o escritor Ferréz narra a saga da linda garotinha chamada Manhã que tem sua vida positivamente transformada graças à educação. É comovente a relação admirável e respeitosa que vai sendo construída entre a menina afrodescendente, com origem humilde e morada periférica, e o professor Marcão. Admirável perceber o perfil de educador ideal, incorporado por Marcão, para incentivar, ao mesmo tempo, o conhecimento e autoestima dos estudantes, desde pequeninos: “Disse um bom-dia, deu um sorriso e foi para a mesa do professor, começou a aula falando sobre a linguagem, e logo o assunto foi para a sociedade, era assim que dava aula, começava com a matéria e partia para uma pequena aula de educação moral e cívica todos os dias, sabia da carência dos seus alunos, e tentava apontar caminhos desde já para eles”. 

Com sensibilidade social apuradíssima, o educador, observando “aquela menina, sempre mal-arrumadinha, sempre acuada no canto da sala”, chamou Manhã para conversar. Assim, o professor teve acesso à difícil realidade imposta à aluna, desde pequenina: “Marcão então começou a entender por que ela vinha tão malvestida para a escola, e continuando a conversa, descobriu que ela mesma, ao chegar em casa, fazia os deveres domésticos, cozinhava para comer, lavava a própria roupa, ou seja, com apenas nove anos de idade, Manhã já tinha a responsabilidade de uma mulher”. Gentilmente, o professor, no encontro seguinte, presenteou a garotinha com um lindo vestido esmeralda. Daquele momento em diante, Manhã experimenta sucessivos momentos de valorização admirável, incluindo orgulhosamente sua negritude. Da beleza individual à boniteza comunitária, um efeito dominó às avessas passou a sustentar o êxito coletivo destacado na trama: “uma peça levanta a outra, que levanta a outra, e assim todos passam a conhecer um amanhecer esmeralda”. 
   
* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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