quinta-feira, 12 de novembro de 2015

PALAVREADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Uma das maiores conquistas de Sigmund Freud foi a restauração da palavra, do Logos, velho termo grego prenhe de significações maravilhosas. A palavra é algo mágico, força que brota do nosso íntimo. A palavra pode ser curativa ou maléfica, segundo a intenção de quem a usa. Sabemos, por informação dos grandes místicos brasileiros (Chico Xavier, André Luiz, Emmanuel, Joanna de Ângelis), que da mente, clareada pela razão, sede dos princípios superiores que governam a individualidade, partem as forças que asseguram o equilíbrio orgânico. E por intermédio de raios ainda inabordáveis ao entendimento humano, vão vitalizando os centros de nosso corpo sutil.

O bem constitui sinal de passagem livre para os cimos da Vida Superior, enquanto que o mal significa sentença de interdição, constrangendo-nos a paradas mais ou menos difíceis de reajuste. A respeito, o poeta Raul de Taunay, em “Há momentos” (40 poemas, 2015), apresenta a transitoriedade sentimental que marca a versatilidade do espírito humano, tanto em situações pesadas como em dinâmicas leves no tocante ao viver: “Há momentos na vida de sutil apatia,/Há também vendavais de viril agonia,/Há no peito o cantar que modula meu dia,/Há no amor absoluta e total sinergia./Há na rima o embalar deste mundo que gira,/Há no céu a doçura de um mar de alegria./No poema há o fulgor do selvagem que grita,/Há em mim mansidão da criança que espia”. 

Diante da nossa multiplicidade temperamental, a possibilidade de comunicação tem na palavra o ato redentor. Exemplo desta magnitude expressiva se encontra no poema “Palavreado” (40 poemas, 2015), de Raul de Taunay: “Palavras doces são lindas magias/Que rendem tão belas as trovas do dia;/As palavras castas são feitiçaria/Que de, tão mimosas, viram sinfonias./Estância tão frágil, clarão excessivo,/É estrofe parida com o pé comprido;/Como a cachaça, é sol com chuvisco,/Letrinha guisada, copioso petisco./Os versos partidos que trago comigo/São meras palavras que junto no grito;/Não mais me concebo sem estes rabiscos/Que eternizam meu sonho iludido./Por isto é que sou, se sou alegrias,/Morrendo de amor, palavras sou, vadias”. Libertamo-nos dos demônios interiores pela palavra. Que demônios são esses? Nós mesmos, nossos atos em existências transatas, em desvarios de poder, crueldade, ambição, e todo o cortejo sinistro das consequências inevitáveis. 

Nas Confissões (XI, 28), Santo Agostinho dizia: “Portanto, o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado”. Hannah Arendt fez desta afirmação o centro irradiador de sua reflexão sobre a condição humana: “É só chamando o futuro e o passado no presente da recordação e da expectação que o tempo existe”. “A memória é a presença do não mais como a expectação é a presença do não ainda”.

Entre o “não mais” e o “não ainda” inscreve-se a palavra fundadora do sujeito. A democracia faz parte de uma forma de vida em que o sujeito é pensado como um futuro imprevisível, e a imprevisibilidade, apesar de inquietante, deve ser investida como desejável. Do contrário, diz Agostinho, temos o hábito, a verdadeira fonte do pecado. Ou, nos seus próprios termos, “a inclinação do mundo para valorizar seus pecados deve-se menos à paixão do que ao habito”. É o hábito que consolida aquilo que os homens fundam na cobiça. “O hábito”, prossegue Arendt, “é o eterno ontem e não tem futuro. Seu amanhã é idêntico ao hoje”.

No pensamento arendtiano, o hábito tornou-se o oposto do pensar e do compreender. Pensar é buscar a homologia consigo mesmo e estar sempre prestes a recomeçar; não pensar é entregar-se ao hábito no qual radica a banalidade do mal. Para a democracia, o desafio ético é: como fazer o sujeito aceitar a ideia de sua contingência histórica, abrindo mão dos hábitos, sem perder o compromisso com a construção de um mundo humano para os humanos? Ou, em outros termos: como acolher a incerteza sem torna-la desamparo? Como trocar a previsibilidade pela aventura da liberdade? A saída está na palavra. Ela é a possibilidade do “recomeço”, única alternativa ao ciclo do eterno retorno. Devemos acreditar que “os homens embora devam morrer não nascem para morrer mas para recomeçar”. Trata-se, então, de tentar entender o que, no presente, vem impedindo a palavra de funcionar em sua dimensão libertária e iniciadora.

Daí a necessidade constante da reflexão, do debate, da discussão em torno do óbvio. Óbvio também é não encarar o mal como tal. Nem sempre o óbvio é tão ululante, tomando-se de empréstimo a expressão de Nelson Rodrigues. Na leitura do Sermão do Padre Antônio Vieira, pronunciado na Primeira Dominga do Advento, em 1650, encontramos esta pérola de sabedoria: “[...] e muitos outros varões santos e sisudos, que quando lhes ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do precipício”. Em outras palavras, o que Vieira diria é que “toda altura é um precipício”. Movidos pelo poderoso insumo da ambição desmedida, a falta de bom senso costuma nos embalar pelo sonho fátuo do poder a qualquer preço. É preciso ter dignidade e coragem para enfrentar essas situações que trazem angústia e sofrimento, buscando as causas e as soluções para o problema.

O escritor português José Saramago acreditava no poder da palavra como sendo incentivadora da autonomia humana, para além da prática do convencimento persuasivo: “Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro”. Nada pode violentar mais do que não ser. A cultura da violência se estabelece e muito pior que a miséria econômica, que também é lamentável, é a miséria do espírito humano, à qual estamos entregues.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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