sexta-feira, 13 de novembro de 2015

CASA DA FLOR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O grande jornalista, Sérgio Porto, o Stanislau Ponte Preta (1923-1968), repetiria, com certeza, que estão soprando o rabo do touro para lhe corrigirem a curvatura dos chifres. Perde-se tempo, e fatos mais graves acontecem. O que realmente importa na hora do pega pra capar? Ninguém, sob emergência, dá prioridade a avalanche de coisas e bens materiais — as quais perdemos a vida para acumular e brandir status. Na hora do sufoco, só desejamos mesmo é água, ar, nutrição básica, teto mínimo, vestes que cubram e aqueçam, transporte solidário, prazer, saúde, festa de coisas simples e o amor correspondido de família, pessoas e comunidades fraternas. O resto é show da mídia e factoides do poder. Ter é o terror! Submeter para obter, o terror extremo.

‘‘Respeitáááável público...aqui estamos para mostrar que a vida pode ser mais atrevida, se a gente quiser (coro: se a gente fizer) ... que a vida pode ser perdida quando a gente não revida e desiste (coro: existir é resistir) ... estamos aqui para celebrar a rua como o maior parlamento (coro: Brasília não é só monumento) ...’’. Assim começava o texto de TT Catalão, chamado Esquadrão da Vida, que o ator e diretor Ary Pára-raios incorporou, em 1976, como grupo. O tempo dos anos de chumbo passou – e, tomara, ele não volte. Mas o tempo de sonhar com um mundo menos vil, desigual e egocêntrico, esse não passou nem passará. Como a vida demonstra, a consciência ética nem a sabedoria vêm sempre com as letras; uma e outra são inerentes a cada um de nós, ou assimiladas na sofrida dialética do cotidiano.

Caetano Veloso costuma dizer que nós, brasileiros, temos medo do sucesso. Nós nos assustamos se somos efetivamente bons em algo. Relutamos em aumentar a autoestima. Isso, segundo a tese do cantor baiano, decorre das responsabilidades que isso nos traria. E, como temos medo de assumir grandes desafios, seria preferível manter tudo como está. Smetak (1913-1984), suíço de berço e baiano por vocação cósmica, é músico referência além das sonoridades impossíveis. Odiava ser tratado como exótico por ser apenas coerente. Recriou o ‘‘salve-se quem puder’’ (individualista no sufoco) para ‘‘salva-se quem souber’’. Não por elogio da competência técnica, sobrevivência a qualquer custo: desejava um ‘‘mundo de sábios e não de sabidos’’, outra dele.

A história é uma coleção de bons e maus exemplos. Direto do Brasil sabido, os escândalos não nos espantam mais, de tantos e tão repetidos. O sentimento que nos domina é o da desolação. Falemos do Brasil sábio, onde se revela o verde da esperança e o amarelo do brilhantismo. Detalhe: Machado de Assis chamava o Brasil sábio de Brasil real, diferenciando-o do Brasil dos podres poderes: “o país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco” (Diário do Rio de Janeiro, em 29/12/1861).

No município fluminense de São Pedro da Aldeia, Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985) começou a construir seu lar, em 1912. Seu Gabriel tinha uma certeza: iria viver ali sozinho o resto da vida. Quando voltava do trabalho na roça, ele se dedicava à construção da casa. Sonhou, depois que ela estava erguida, que precisava de um colorido. Enfeitar com o que, nessa pobreza franciscana? Riu do sonho, mas tinha obrigação de realizá-lo. Começou a procurar coisas no lixo, como garrafas, azulejos quebrados, pratos, pedaços de coisas alegres, lâmpadas, conchinhas. As pedras rejeitadas viraram a pedra angular. Começou a criação. Um losango daqui, umas flores ali, uma costura com cacos de vidro. O resto da vida foi criando, acrescentando, achando coisas lindas no lixo que só os olhos dele podiam ver. E pronto. Com 93 anos de idade, faleceu. Hoje, aquela casinha é chamada de organismo vivo, um corpo, um coração. É a Casa da Flor. É parte do Patrimônio Histórico e Cultural do município. Seu Gabriel é comparado a Gaudí, arquiteto catalão com obras em Barcelona. Que lição pode ser tirada dessa arquitetura espontânea? A determinação em ter o sonho realizado, a coragem de seguir o coração, a criatividade que escapou de todas as barreiras e regras definidas e convencionais. Como dizia seu Gabriel, ‘‘todo caquinho transformado em beleza’’.

O processo de construção da Casa da Flor, realizado pelo seu Gabriel, pode servir de alegoria para a fundação do conhecimento complexo, pois conhecer é sempre rejuntar uma informação ao seu contexto e ao conjunto ao qual pertence. Sustentar o invento chamado realidade exige a consciência do seu mosaico cultural constitutivo. A reciclagem criadora de seu Gabriel dialoga com a fórmula de um grande filósofo da antiguidade Heráclito, “viver de morte e morrer de vida”. Trata-se de um pensamento paradoxal, pois se há duas ideias que são totalmente antagônicas são a morte e a vida. Um grande cientista do século XIX, que se chamava Bichat, definia a vida como um conjunto de forças que resiste à morte. 

No entanto, hoje em dia, com o progresso do conhecimento biológico, ficamos sabendo que estas forças resistem à morte, utilizando a morte. Como? Sem parar, nosso organismo tem moléculas que se degradam, e nossas células as substituem por moléculas novas; nossas próprias células morrem e novas células vêm no lugar destas. Dito de outra maneira, nossa vida, através da morte das nossas células e das nossas moléculas, continua. Este processo evidencia a fórmula de Heráclito – “viver de morte” e o método do seu Gabriel – criar é tirar vida nova do descartável. Eis o ciclo nutritivo da cultura, vindo diretamente da melhor brasilidade.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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