Marcos Fabrício Lopes
da Silva*
A nossa existência
parece ser uma sucessão infindável de encontros: encontro com o trabalho, com a
família, com os amigos. Encontro com o amor. Encontro com o destino.
Invariavelmente quando penso em encontros me vem ao pensamento o que disse
Vinícius de Moares no seu Samba da benção
(1962): “a vida é a arte do encontro”. Do seu revés, da sua negação, o
poeta não se esqueceu, e assim completou o verso: “A vida é a arte de encontro,
embora haja tanto desencontro pela vida”. É assim que os encontros se tornam
mágica, pela superação dos seus reveses, dos desencontros. Muitas vezes o acaso
é o grande promotor de encontros memoráveis, em que transforma o inesperado em
um suave sorriso. Palmas para o acaso, que tão bem arquiteta encontros e bons
momentos entre nós, esses seres humanos sempre em busca de diversões e
companhias.
Existem reflexões,
porém, que combatem a noção de acaso, tentando assim desvendar o que cerca a
“compreensão do risco”. O livro O acaso e
a necessidade (1970) defende a seguinte tese: tudo que acontece no processo
evolutivo não ocorre apenas por puro acaso, mas, como afirma o título da obra
fundamental de Jacques Monod, a evolução se dá por acaso e necessidade, ou
seja, segundo João Paulo Monteiro, professor de filosofia na Universidade de
Lisboa, “a seleção natural faz da evolução das espécies uma espécie de
‘algoritmo’, que realiza sua tarefa — a construção de um mundo cheio de
espécies adaptadas a seus ambientes naturais —, sem que haja um desígnio
superior a governar todo o conjunto”.
Cabe em nossa
relação com o acaso a lógica da vida que ainda não assimilamos. Ao mesmo tempo,
é preciso reconhecer que não estamos preparados para lidar com o aleatório – e,
por isso, não percebemos o quanto o acaso interfere em nossas vidas. A
respeito, canta o grupo Titãs a poética da incerteza: “Devia ter amado mais/Ter
chorado mais/Ter visto o sol nascer/Devia ter arriscado mais e até errado
mais/Ter feito o que eu queria fazer/Queria ter aceitado as pessoas como elas
são/Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração/O acaso vai me
proteger/Enquanto eu andar distraído/O acaso vai me proteger/Enquanto eu
andar...”. Alguns preferem chamar o acaso de “feliz coincidência” ou
“providência divina”. Carl Jung construiu o conceito de “sincronicidade” para
tentar dar conta deste grande desafio. Trata-se de um exercício reflexivo que
visa explicar a coincidência entre dois ou vários eventos, sem relação causal
entre si, mas possuindo um mesmo conteúdo significativo. Sincronicidade,
segundo Jung, é um conceito que une dois ou vários acontecimentos sem união
causal. Porém a sequência dos mesmos acontecimentos forma um todo, cuja
interpretação é captada pelo sujeito, possuindo significado idiossincrático.
Mereceu também a
temática do acaso um cuidado musical na bela canção de César Camargo Mariano:
“Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez
cruzar/O meu caminho com o seu/Eu nem queria mais sofrer/A agonia da paixão/Nem
tinha mais o que esquecer/Vivia em paz, na solidão/Mas foi te encontrar/E o
futuro chegou como um pressentimento/Meus olhos brilharam, brilharam/No escuro
da emoção/Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia
fez cruzar/O seu caminho com meu”. Pelos caminhos do acaso, em sua dimensão
tortuosa, podemos pensar a estabilidade e o equilíbrio não como formas
primeiras que antecedem a “fundação” da natureza das coisas, mas como efeitos
solidários de um movimento universal que comporta em uma mesma medida o
instável e o desequilíbrio.
O acaso nos lança
para uma posição menos totalitária: a experiência estética deixa de ser
exclusivamente a manifestação de um saber ou de um sentimento, e se assume como
um universo pleno de movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se
transforma. Tomando o acaso como cruzamento de causas independentes,
questionam-se visões excessivamente egocêntricas que visam a esgotar a presença
do “indeterminado” entre nós. O medo e o fascínio promovidos pelo cenário de
incerteza ganhou especial interrogação nas mãos do educador Rubem Alves, em Palavras para desatar nós (2011), a
saber: “a vida toda não será assim uma luta contra o caos sem sentido em busca
de uma beleza escondida?”. O que quer a dinâmica do acaso: fazer as pessoas
sorrirem ou chorarem? Uma coisa é certa: que bom que de vez em quando surja
alguém para nos lembrar o quanto temos vivido tão distraidamente desabraçados.
Isto significa driblar o destino programado da solidão, do isolamento em meio à
multidão inquieta e à minoria próspera. A complexidade do conceito de acaso já
pode ser deduzida da quantidade de palavras que surgem em nosso cotidiano e que
se relacionam ou se confundem com ele: sorte, azar, coincidência, acidente,
contingência, indeterminação, destino, causa fortuita, aleatoriedade.
Quando se diz que
alguma coisa é obra do destino, pode-se estar querendo dizer que é produto de
um jogo de forças imprevisíveis da natureza, de cruzamentos não necessários,
acidentais, enfim, uma afirmação do acaso. Mas pode ainda se referir a algo que
já estava escrito, previsto num roteiro minuciosamente traçado do qual não se
pode escapar, uma negação do acaso. Normalmente, quando começamos a contar uma
história, buscamos encontrar sempre uma relação de causalidade entre diferentes
acontecimentos. “Primeiro ocorreu isso, depois aquilo. Aquilo ocorreu por causa
disso.” Há sempre um exercício mental de procurar por uma sucessão lógica do
desenvolver dos fatos. Somos tentados a acreditar que sempre existe uma
explicação, que há um motivo por trás das coisas. No entanto, sejamos sinceros:
muitas vezes simplesmente não há um porquê, o que acontece se trata de um capricho do destino. Daí, surge talvez
aquilo que Walter Benjamim descreve como “centelha do acaso”.
* Professor das Faculdades
Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos
Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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