segunda-feira, 4 de julho de 2016

A CENTELHA DO ACASO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A nossa existência parece ser uma sucessão infindável de encontros: encontro com o trabalho, com a família, com os amigos. Encontro com o amor. Encontro com o destino. Invariavelmente quando penso em encontros me vem ao pensamento o que disse Vinícius de Moares no seu Samba da benção (1962): “a vida é a arte do encontro”. Do seu revés, da sua negação, o poeta não se esqueceu, e assim completou o verso: “A vida é a arte de encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. É assim que os encontros se tornam mágica, pela superação dos seus reveses, dos desencontros. Muitas vezes o acaso é o grande promotor de encontros memoráveis, em que transforma o inesperado em um suave sorriso. Palmas para o acaso, que tão bem arquiteta encontros e bons momentos entre nós, esses seres humanos sempre em busca de diversões e companhias.

Existem reflexões, porém, que combatem a noção de acaso, tentando assim desvendar o que cerca a “compreensão do risco”. O livro O acaso e a necessidade (1970) defende a seguinte tese: tudo que acontece no processo evolutivo não ocorre apenas por puro acaso, mas, como afirma o título da obra fundamental de Jacques Monod, a evolução se dá por acaso e necessidade, ou seja, segundo João Paulo Monteiro, professor de filosofia na Universidade de Lisboa, “a seleção natural faz da evolução das espécies uma espécie de ‘algoritmo’, que realiza sua tarefa — a construção de um mundo cheio de espécies adaptadas a seus ambientes naturais —, sem que haja um desígnio superior a governar todo o conjunto”.

Cabe em nossa relação com o acaso a lógica da vida que ainda não assimilamos. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que não estamos preparados para lidar com o aleatório – e, por isso, não percebemos o quanto o acaso interfere em nossas vidas. A respeito, canta o grupo Titãs a poética da incerteza: “Devia ter amado mais/Ter chorado mais/Ter visto o sol nascer/Devia ter arriscado mais e até errado mais/Ter feito o que eu queria fazer/Queria ter aceitado as pessoas como elas são/Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar distraído/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar...”. Alguns preferem chamar o acaso de “feliz coincidência” ou “providência divina”. Carl Jung construiu o conceito de “sincronicidade” para tentar dar conta deste grande desafio. Trata-se de um exercício reflexivo que visa explicar a coincidência entre dois ou vários eventos, sem relação causal entre si, mas possuindo um mesmo conteúdo significativo. Sincronicidade, segundo Jung, é um conceito que une dois ou vários acontecimentos sem união causal. Porém a sequência dos mesmos acontecimentos forma um todo, cuja interpretação é captada pelo sujeito, possuindo significado idiossincrático.

Mereceu também a temática do acaso um cuidado musical na bela canção de César Camargo Mariano: “Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O meu caminho com o seu/Eu nem queria mais sofrer/A agonia da paixão/Nem tinha mais o que esquecer/Vivia em paz, na solidão/Mas foi te encontrar/E o futuro chegou como um pressentimento/Meus olhos brilharam, brilharam/No escuro da emoção/Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O seu caminho com meu”. Pelos caminhos do acaso, em sua dimensão tortuosa, podemos pensar a estabilidade e o equilíbrio não como formas primeiras que antecedem a “fundação” da natureza das coisas, mas como efeitos solidários de um movimento universal que comporta em uma mesma medida o instável e o desequilíbrio.

O acaso nos lança para uma posição menos totalitária: a experiência estética deixa de ser exclusivamente a manifestação de um saber ou de um sentimento, e se assume como um universo pleno de movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma. Tomando o acaso como cruzamento de causas independentes, questionam-se visões excessivamente egocêntricas que visam a esgotar a presença do “indeterminado” entre nós. O medo e o fascínio promovidos pelo cenário de incerteza ganhou especial interrogação nas mãos do educador Rubem Alves, em Palavras para desatar nós (2011), a saber: “a vida toda não será assim uma luta contra o caos sem sentido em busca de uma beleza escondida?”. O que quer a dinâmica do acaso: fazer as pessoas sorrirem ou chorarem? Uma coisa é certa: que bom que de vez em quando surja alguém para nos lembrar o quanto temos vivido tão distraidamente desabraçados. Isto significa driblar o destino programado da solidão, do isolamento em meio à multidão inquieta e à minoria próspera. A complexidade do conceito de acaso já pode ser deduzida da quantidade de palavras que surgem em nosso cotidiano e que se relacionam ou se confundem com ele: sorte, azar, coincidência, acidente, contingência, indeterminação, destino, causa fortuita, aleatoriedade.

Quando se diz que alguma coisa é obra do destino, pode-se estar querendo dizer que é produto de um jogo de forças imprevisíveis da natureza, de cruzamentos não necessários, acidentais, enfim, uma afirmação do acaso. Mas pode ainda se referir a algo que já estava escrito, previsto num roteiro minuciosamente traçado do qual não se pode escapar, uma negação do acaso. Normalmente, quando começamos a contar uma história, buscamos encontrar sempre uma relação de causalidade entre diferentes acontecimentos. “Primeiro ocorreu isso, depois aquilo. Aquilo ocorreu por causa disso.” Há sempre um exercício mental de procurar por uma sucessão lógica do desenvolver dos fatos. Somos tentados a acreditar que sempre existe uma explicação, que há um motivo por trás das coisas. No entanto, sejamos sinceros: muitas vezes simplesmente não há um porquê, o que acontece se trata de um capricho do destino. Daí, surge talvez aquilo que Walter Benjamim descreve como “centelha do acaso”.



* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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