terça-feira, 4 de outubro de 2016

A UNIVERSIDADE NECESSÁRIA


Estudos sobre a formação da sociedade brasileira constatam como as dinâmicas estruturais da economia, da política e da legislação produziram ilhas de abastados e de privilegiados e uma miríade de desprovidos. Não se enxergavam pessoas, mas o seu valor segundo o quanto elas podiam produzir e consumir. Com a República, nós nos tornamos cidadãos sem os direitos republicanos e com a imensa tarefa de conquistar os direitos sociais. Foi assim na educação básica e na superior, visto que as elites nacionais criaram estruturas e instituições no país, voltadas para a formação dos seus bacharéis. Esta situação de formar bacharéis e de omitir os direitos e sociais da população estruturou a formação da sociedade brasileira. O não reconhecimento dos bens públicos, as práticas neopatrimoniais e a apropriação dos bens materiais e imateriais por tradição familiar são elementos substanciais enraizados na trajetória da educação do país.

Foi contrariando esse contexto que Anísio Teixeira (1900-1971) se fez firme na defesa da escola pública gratuita e laica, defendendo que educação não é privilégio, mas que todos têm direito a ela. Darcy Ribeiro (1920-1995) também foi decisivo ao se empenhar nos estudos do processo civilizatório que revelaram as circunstâncias culturais constituintes da identidade do povo brasileiro. A esses intelectuais se juntaram Oscar Niemeyer (1907-2012) e Cyro dos Anjos (1906-1994) para projetar e implementar a Universidade de Brasília (UnB). Conduzida pelos pensadores citados, a comissão, instituída pelo então presidente da República, Juscelino Kubistscheck (1902-1976), por meio da Lei nº. 3.998, de 15/12/1961, viabilizou a concretização desse projeto de educação audacioso, no contexto de transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília.

Segundo seu Plano Diretor (FUB, 1962), a UnB, chamada por Darcy Ribeiro de “universidade necessária”, tem como compromissos: a) formar cidadãos responsáveis, empenhados na procura de soluções democráticas para os problemas com que se defronta o povo brasileiro na luta pelo desenvolvimento; b) preparar especialistas altamente qualificados em todos os ramos do saber, capazes de promover o progresso social pela aplicação dos recursos da técnica e da ciência; c) reunir e formar cientistas, pesquisadores e artistas e lhes assegurar os necessários meios materiais e as indispensáveis condições de autonomia e de liberdade para se devotarem à ampliação do conhecimento e à sua aplicação a serviço do homem.

O que vem, entretanto, impedindo que a universidade e a escola caminhem juntas no sentido de alavancar planos diretores dessa magnitude, em matéria de ensino superior? Em um milênio de incertezas, como o que começamos a viver, nunca foi tão importante a presença de um professor bem formado no seu campo de estudos, em termos dos valores éticos e humanos que dão sentido às práticas educativas e com visão interdisciplinar das ciências pedagógicas. A Licenciatura não é desenvolvida na perspectiva de formar o licenciado, ou seja, o professor, mas o enfoque predominante é, ainda, a formação do bacharel. Como no Brasil a opção histórica foi a de delegar às universidades, centros e faculdades a missão de preparar o magistério, cumpre encontrar alternativas para que esse objetivo se cumpra em sua plenitude, malgrado estarmos, ainda, distante desse avanço.

Ainda sobre o tema em questão, outro grave problema se deu porque o sucesso em valorizar a pesquisa ocorreu à custa de um relativo divórcio entre a formação dos professores e as universidades, comprometendo uma das razões de sua criação no Brasil. O desprestígio social do professor da educação básica contradiz qualquer discurso sobre a importância da educação. Ademais, décadas de afastamento entre a universidade e a escola básica põe em dúvida a capacidade de uma em formar quem vai trabalhar na outra. Daí a importância de uma formação na escola, como também é importante para o exercício da profissão médica a residência num hospital credenciado. Assim, vem se perdendo a finalidade principal do ensino que, como estabelece o artigo 205 da Constituição, deve visar ‘‘o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’’. O professor Miguel Reale, jurista, filósofo e ex-reitor da USP, fixa três finalidades do ensino: a) formação da personalidade do educando, tanto do ponto de vista físico quanto ético; b) dar-lhe consciência de seu papel na sociedade para o exercício da cidadania; c) ministrar-lhe os ensinamentos exigidos e facilitar o acesso aos postos de trabalho, num sistema de produção cada vez mais automatizado.

Pensar a função social da educação implica problematizar a escola que temos na tentativa de construirmos a escola que queremos. Para dar sustentação às contínuas evoluções, a escola precisa ressaltar um ensino que crie conexão entre o que o aluno aprende nela e o que ele faz fora dela, conexão entre o ensino formal e o mundo do trabalho, entre o conhecimento e a vida prática do estudante. Os conteúdos curriculares devem estabelecer a relação entre teoria e prática, através de situações próximas da realidade do aluno, permitindo que os conhecimentos adquiridos melhorem sua atuação na vida cotidiana. É preciso englobar também a compreensão do conhecimento enquanto bem social que só pode ser produzido, criticado e transmitido em benefício da sociedade em instituições plurais e livres que desfrutem de plena autonomia e liberdade acadêmica. Desse modo, a universidade não pode ser reduzida aos valores econômicos, pois há a necessidade de perseguir o sentido ético e social do conhecimento e da formação, componentes fundamentais da ideia de educação integral.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

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