segunda-feira, 4 de julho de 2016

A VIOLÊNCIA E A QUESTÃO MORAL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Através de notícias diárias, toma-se conhecimento de como proliferam os caprichos dos insanos, e da facilidade com que mentem, violam, roubam e matam. Prejuízo coletivo maior comentem os sociopatas ou psicopatas evolutivos, que são socialmente diferenciados. Não raro, eles ocupam amplos espaços na sociedade; entretanto, se governam, o fazem sem justiça; se decidem, a irracionalidade preside seus atos, se julgam, desobrigam-se de obedecer à lei – à letra da lei. É flagrante a incapacidade de seguir o princípio de P. Jonhson-Laird: ‘‘para decidirem, julguem; para julgarem, raciocinem; para raciocinarem, decidam (sobre o que raciocinar)’’. Constituem estes alguns exemplos de um estado patológico, em que uma diminuição da racionalidade se faz também acompanhar de carência ou de completa ausência de sentimentos.

Posto isto, não há como discordar do ensaísta e psicanalista Ataulpho Ribeiro, em Reestruturas do pensamento: “o comportamento dos homens, ao longo de toda a história, de suas vicissitudes, o seu imutável perfil psicológico, seu perfil animal de rapina, de predador implacável – ‘todo homem leva dentro de si um animal selvagem’, sempre foi vincado pela violência, rapacidade, sofreguidão hedonista, corrupção, solércia, ambição de poder...’’. Vai além, citando o biologista Ardrey: ‘‘o ser humano, a última palavra em matéria de predador armado’’ e Nietzsche: ‘‘o homem é o mais cruel de todos os animais’’. Uma tragédia, pois, assim se pode antever um progressivo processo de degenerescência humana: a pequenez dos homens insensatos, insensíveis e indiferentes a silenciar sobre os apelos da equidade, da persuasão, da tolerância, da benevolência, da magnanimidade.

Renato Russo e a Legião Urbana, na canção Baader-Meinhof Blues (1984), criticavam a manifestação da agressividade por meio da tirania, da opressão, do abuso da força e do constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obriga-la a fazer ou deixar de fazer um ato qualquer: "A violência é tão fascinante/E nossas vidas são tão normais/E você passa dia e noite e sempre/Vê apartamentos acesos/Tudo parece ser tão real/Mas você viu esse filme também/Andando nas ruas pensei que podia ouvir/Alguém me chamando, dizendo meu nome/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê/Essa justiça desafinada é tão humana e tão errada/Nós assistimo televisão também, qual é a diferença?/Não estatize meus sentimentos pra seu governo/O meu estado é independente/Ô ô ô/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê".

A violência ocorre nos escritórios com ar condicionado, tapete e toda parafernália eletrônica. A palavra não dita, omissa, é a pior violência. A omissão é um crime duplo. E o capital é a violência a que o trabalho morto (a máquina, a mercadoria) submete o trabalho vivo (a mão-de-obra). O desemprego não corta só orelhas, corta tudo: a dignidade, a vida. Violento é o neoliberalismo, doutrina de ricos, jamais liberais, para os pobres. Países ricos sempre foram protecionistas e o são cada vez mais. A selvageria do ‘‘livre’’ mercado é para os pobres se comerem uns aos outros. ‘‘As veias abertas da América Latina’’ e restante do Segundo e Terceiro Mundo alimentam os vampiros internacionais, que brincam na jogatina das bolsas de valores.

Vampirismo de um lado e contraviolência de outro. Os que são chamados violentos na verdade são contraviolentos, pois a verdadeira violência é sutil. É feita pelo gesto feito ou não feito, pela palavra dita ou não dita, escrita ou não escrita. O que diferencia um ato ou omissão bons ou ruins é a intenção. A violência contundente é o epifenômeno, o reflexo do gesto sutil. Se a essência e a aparência se confundissem, toda ciência seria supérflua, ensina Marx. Portanto, os que detêm o poder é que são violentos, quando há contraviolência contundente. O processo de esvaziamento ético, de destruição do valor social das posturas moralmente recomendáveis, que está levando a uma situação difícil em praticamente todos os domínios da vida social brasileira (ainda que nosso interesse principal seja o ambiente escolar), tem origem numa miríade de fatores. Entre eles, o próprio jeito cultural brasileiro de enfrentar desvios de conduta. Alguns desses temas, à medida que o debate avançar, devem se tornar alvos importantes.

Gilberto Freyre havia mostrado que vivemos um processo de formação moral da elite do País extremamente distorcido. Os filhos da Casa Grande tinham todos os direitos, inclusive os de serem absolutamente desumanos com os filhos da Senzala. Insensibilidade era uma palavra doce perto do que costumavam exprimir, em seus atos, os pequenos coronéis. Crueldade seria um conceito mais adequado.

Não deveria surpreender que, à medida que o País se urbanizasse e rompesse os laços da servidão rural, na ausência de um processo social fortemente reestruturador de valores e posturas, o que teria talvez exigido uma revolução social, em vez de vivermos um processo de elevação ética coletiva, vivêssemos o seu contrário, isto é, uma generalização da anomia moral. Antes privilégio da elite senhorial, tornou-se prerrogativa coletiva, até se tornar lema nacional com o ‘‘levar vantagem em tudo’’. Mas o curioso é constatar que nós enfrentamos o colapso moral não através da insistência numa socialização de conceitos, na recriação de um novo padrão ético, mas no desenvolvimento de posturas repressivas ou simplesmente impeditivas. Isto é, em vez de convencer a mudar o comportamento, jogamos toda nossa energia em promover a manifestação do comportamento aético, com o que o comportamento ético não é valorizado.



* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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