domingo, 27 de novembro de 2016

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E IRRESPONSABILIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


É sabido que a expressão “Revolução Industrial” foi aplicada às inovações técnicas que alteraram os métodos de trabalho tradicionais e a partir das últimas décadas do século XVIII, propiciaram um grande enriquecimento econômico. A essência da Revolução Industrial, ocorrida primeiramente em solo inglês, assentou-se no princípio de que a mudança é a norma. Inventa-se algo e, em pouco tempo, uma nova técnica ou um novo instrumento mais eficiente torna o anterior obsoleto. A Revolução Industrial também promoveu a fábrica como importante local de trabalho; os capitalistas tornaram-se os detentores dos meios de produção (terra, equipamentos, máquinas); o trabalhador, contratado livremente, passou a receber salário, podendo se deslocar de um emprego para outro. A Revolução Industrial alterou profundamente os meios de produzir, estimulou e provocou a competição por mercados internos e externos, e além disso fez com que o trabalho humano passasse a ser combinado de forma sistemática às máquinas e inovações tecnológicas.

Entretanto, o carro-chefe dos tempos modernos não conduziu todos os homens ao paraíso, pois não conteve os efeitos deletérios do progresso material sobre a conduta moral. O ritmo urbano acelerado e as mudanças econômicas e políticas, bem como o desenvolvimento da ciência e da técnica, alimentaram a ideia de que a vida em sociedade é fruto do trabalho e da invenção humana. Quem, então, põe ordem no mundo? Não predomina mais a visão religiosa, e sim o entendimento de que os homens são responsáveis pelos rumos da sociedade. A necessária regulação em defesa de regras e condutas morais no campo econômico nasceu de uma realidade contestatória: vale tudo para ganhar dinheiro? Esmiuçando a questão, a Legião Urbana, na música “Fábrica” (1986), fez uma importante leitura do processo de industrialização a contrapelo:

“Nosso dia vai chegar/Teremos nossa vez/Não é pedir demais/Quero justiça/Quero trabalhar em paz/Não é muito o que lhe peço/Eu quero um trabalho honesto/Em vez de escravidão/Deve haver algum lugar/Onde o mais forte/Não consegue escravizar/Quem não tem chance/De onde vem a indiferença/Temperada a ferro e fogo?/Quem guarda os portões/Da fábrica?/O céu já foi azul/Mas agora é cinza/O que era verde aqui/Já não existe mais/Quem me dera acreditar/Que não acontece nada/De tanto brincar com fogo/Que venha o fogo então/Esse ar deixou minha vista cansada/Nada demais”.

Faltou à Revolução Industrial a revolução do discernimento, pois “aqueles que se entregam à pratica sem ciência são como o navegador que embarca em um navio sem leme sem bússola”, conforme advertência feita, desde o Alto Renascimento, por Leonardo da Vinci. Em torno do conhecimento e da ciência, encontram-se a necessidade humana do saber, o fenômeno do poder, de dominação da realidade e, por certo, a liberdade do homem e suas limitações. Alfred North Whitehead, em seu livro A função da razão (1938), existe uma função prática, desveladora das formas e modos de transformação da existência humana “numa boa existência, e transformar uma boa existência numa existência melhor ainda”. Esta é a Razão Prática, que podemos relacionar à tecnologia. Outro aspecto da função da Razão coloca-se acima das tarefas práticas do mundo, busca uma compreensão da realidade e cumpre sua função quando o entendimento é alcançado. É a Razão especulativa “e o progresso que ela busca é sempre o progresso de uma melhor compreensão”. Podemos apontar aqui o caminho da Ciência.

Infelizmente, normal tem sido os políticos e estadistas usarem as pesquisas da ciência e os avanços da tecnologia em projetos de dominação em vez de cooperação pela paz. Em 1938, o presidente Franklin Delano Roosevelt, autorizou o início de pesquisas sobre a liberação da energia do átomo de minerais radioativos. O físico Albert Einstein reuniu cientistas em torno desse projeto chamado Manhattan, desenvolvido em Alamogordo, Califórnia. Sempre foi dito a ele que o objetivo seria abrir uma nova fronteira na ciência. Em 1945, morto Roosevelt, o presidente Harry S. Truman autoriza o lançamento de bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, matando 300 mil japoneses naquele final dramático da II Guerra Mundial. Einstein calou-se, mas abandonou as pesquisas para dedicar-se a estudos de física e conferências sobre a paz. É sempre assim: a ciência pesquisa pensando na paz e no bem, mas os estadistas acabam usando os inventos em conflitos ou pressão estratégica e econômica sobre os mais fracos e crédulos.

Em Tempos Modernos (1936), Charles Chaplin destaca como o desenvolvimento alienado da tecnologia e da ciência estava desumanizando a humanidade. A primeira imagem é de um relógio: são quase seis da manhã. Depois dos créditos do filme, lemos na tela: “Tempos modernos. Uma história de indústria, de empreendimento individual – a humanidade em sua cruzada em busca da felicidade”. Em seguida, como se estivéssemos posicionados num ponto mais alto, vemos um rebanho de ovelhas andando. Entre várias ovelhas brancas, apenas uma negra. Rapidamente a imagem do rebanho é substituída por outra, também filmada de cima: operários apressados saem do metrô em direção à fábrica. Chegando lá, vários operários trabalhando em cadeia: é uma linha de montagem. Os movimentos dos homens são rápidos e repetitivos, ritmados e precisos, como se seus corpos também fosse máquinas. Não sabemos o que eles estão produzindo – será que eles sabem? –, mas o certo é que não podem parar. Enquanto os operários, com uma ferramenta em cada mão, encaixam parafusos ou apertam roscas de maneira mecânica sobre placas em uma esteira que corre à sua frente, não é possível conversar, olhar para o lado ou deixar o pensamento vagar. A máquina enguiça, mas “os sonhos não envelhecem”, como diria Márcio Borges, o que ressalta o diferencial humano para além do apito da fábrica.

* Professor da Faculdade JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

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