segunda-feira, 4 de julho de 2016

ABRAPALAVRA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

De Fagner e Brandão, a música Dois querer (1980): “A palavra liga os olhos/Liga o aceno, liga o adeus/A palavra só não liga/Dois querer que são os teus/Um querer é este mundo/Do jeito que se quer ter/Correndo e falando muito/Que é pra muito se ter/Outro querer é ficar/Sem nunca querer de ter/Um dia que se mudar/Por causa de outro querer/Tem muito querer debaixo/Dos pés desses dois querer/Como água no riacho/Barrada pra não correr/Por isso às vezes te abraço/Noutras te quero bater/Mas é melhor o mormaço/Que o céu azul sem chover/Mas é melhor essa vida/Do que viver sem querer”. É com a palavra e somente com ela que trabalhamos em nosso cotidiano, testemunhando o poder de regeneração. Ela promove o reposicionamento naquele que chega em sofrimento e está disposto a se livrar dele.

Desde os tratamentos inaugurais da psicanálise, como hoje a compreendemos, foi da boca de uma mulher que a verdade foi escutada. Ela trouxe a verdade mais íntima e singular, pois, assim dita, aliviava sua dor. Ela dizia ao médico que, ao falar, era como se fosse uma “limpeza na chaminé”. Felizmente, o médico era Sigmund Freud. A palavra refaz. Conecta-nos com o inconsciente, com o que não conhecemos e compreendemos em nós, fazendo mudanças na maneira como administramos o que é nosso e o que foi herdado do outro e nem sequer sabemos.

A palavra nos introduz na cultura. Aprendemos a falar para chamar pelo outro, por quem cuida de nós quando bebês. Falar a mesma linguagem nos permite expressar nossas necessidades e nos faz pertencer a uma comunidade indispensável à sobrevivência. Juntos, enfrentamos catástrofes, encontramos cura para as doenças, inventamos a roda e a escrita – enfim, construímos uma civilização. A palavra é um laço: tece e costura as nossas relações. Com ela podemos pedir socorro e ajuda. Demandamos aquilo de que precisamos para viver. Ela é, em última instância, um pedido de amor.

A palavra é o nosso recurso, a nossa aposta na vida comum. Quando falamos com alguém, abrimos o nosso universo particular convidando a que nos escutem, olhem para nós. Ela invoca, pede, suplica. A palavra permite que o outro saiba sobre nós e que fale conosco também. Convida a travarmos relações. E esse convite pode ser aceito ou recusado. A palavra lançada ao outro permite que ele diga o que pensa, concorde e discorde, dê conselhos, saiba mais e fale com terceiros sobre aquilo que lhe foi dito. A palavra dita jamais poderá ser recolhida, apagada. E pode ter consequências. Muitas vezes, banalizamos seu valor. Ela destrói e cura, é bendita ou maledicente. Ela declara guerras e amores, convida a entrar e também a sair de nossa singular e íntima jurisdição. Difícil saber administrá-la, pois é precisa como uma espada afiada. Por isso, silenciar nos protege melhor do que falar muito. Assim reza um antigo provérbio que se acredita ser de origem oriental: "o falar é de prata, o silêncio é de ouro". 

Desse modo, a palavra aparece como movimento em torno do silêncio. A respeito, versa, com categoria, o poeta Wélcio de Toledo, no livro Subversos (2015). Refiro-me aos versos do poema “A palavra”, mais especificamente: “a palavra/gravada no papel/realça o branco/das histórias/que ainda/estão por vir/o branco/do papel/que se molda/atrai palavras/recheadas de histórias/prenhes de existir”. Pelas palavras, as histórias são mais sobre o que a gente não sabe do que aquilo que nós nos conhecemos. Falar é preencher os espaços em branco, levando em conta que a noção muito cara de incompletude, pois todo dizer precisa da falta, todo discurso e todo sujeito são incompletos. “As próprias palavras transpiram silêncio” – revela a professora Eni Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (2007). E o silêncio inspira palavras, acrescento.

A palavra abre sulcos na subjetividade e é capaz de suspender bloqueios que nos mantiveram cativos por toda uma vida. Ajuda-nos a suportar o peso da nossa própria dor de existir, seja de que origem ela venha. Seja de uma fantasia ou de uma verdade vivida como desamparo, desamor, rejeição ou violência que tenhamos experimentado, vinda da mão do outro, ou que tenha sido sentida ou interpretada dessa maneira por nossa fragilidade. A palavra deixa marcas de aluvião. Aluvião é a erosão na terra por onde passamas águas de enxurrada. Depois, torna-se o caminho por onde cada chuva ou enchente vai seguir. Nossa subjetividade é marcada por caminhos de aluvião. Cada vez que vivenciamos algo que tenha um ponto em comum com o nosso passado, é por esses caminhos que passarão as emoções. Repetiremos sentimentos conhecidos e marcados, como se o atual apenas confirmasse o que já tínhamos experimentado. E ali atua a palavra, criando novas passagens. O sentido da palavra talvez seja dar aos seres humanos consciência da grandeza que ignoram ter dentro de si.

Nós, seres humanos e falantes, precisamos de ideais que refreiem nossa agressividade. Infelizmente, eles nem sempre funcionam para todos. Necessitamos também de ética para nortear a nossa conduta. Precisamos das leis, pactos criados para que seja possível a manutenção da cultura, da vida em comum. A educação nos molda e nos ensina a nos espelhar em ideais. Faz isso justamente porque o ser humano é diferente dos animais. Somos capazes de mentir, odiar, agredir, roubar e matar não apenas por necessidade básica da sobrevivência, mas para nos dar bem, mesmo que seja sobre a desgraça dos demais. Por isso, precisamos das leis que defendam ideais como a fraternidade, para que o mais forte não vença sempre e domine os mais fracos, oprimindo-os. A fraternidade é um conceito ideal, difícil de praticar, mas somos responsáveis por sua invenção, pois precisamos do outro e sabemos que em nós existe grandeza, solidariedade e laços que nos unem pela via da palavra e dos pactos possíveis.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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