Marcos Fabrício Lopes da Silva*
De Fagner e Brandão, a música Dois querer (1980): “A palavra liga os
olhos/Liga o aceno, liga o adeus/A palavra só não liga/Dois querer que são os
teus/Um querer é este mundo/Do jeito que se quer ter/Correndo e falando
muito/Que é pra muito se ter/Outro querer é ficar/Sem nunca querer de ter/Um
dia que se mudar/Por causa de outro querer/Tem muito querer debaixo/Dos pés
desses dois querer/Como água no riacho/Barrada pra não correr/Por isso às vezes
te abraço/Noutras te quero bater/Mas é melhor o mormaço/Que o céu azul sem
chover/Mas é melhor essa vida/Do que viver sem querer”. É com a palavra
e somente com ela que trabalhamos em nosso cotidiano, testemunhando o poder de
regeneração. Ela promove o reposicionamento naquele que chega em sofrimento e
está disposto a se livrar dele.
Desde os tratamentos inaugurais da psicanálise,
como hoje a compreendemos, foi da boca de uma mulher que a verdade foi
escutada. Ela trouxe a verdade mais íntima e singular, pois, assim dita,
aliviava sua dor. Ela dizia ao médico que, ao falar, era como se fosse uma
“limpeza na chaminé”. Felizmente, o médico era Sigmund Freud. A palavra refaz.
Conecta-nos com o inconsciente, com o que não conhecemos e compreendemos em
nós, fazendo mudanças na maneira como administramos o que é nosso e o que foi herdado
do outro e nem sequer sabemos.
A palavra nos introduz na cultura. Aprendemos a
falar para chamar pelo outro, por quem cuida de nós quando bebês. Falar a mesma
linguagem nos permite expressar nossas necessidades e nos faz pertencer a uma
comunidade indispensável à sobrevivência. Juntos, enfrentamos catástrofes,
encontramos cura para as doenças, inventamos a roda e a escrita – enfim,
construímos uma civilização. A palavra é um laço: tece e costura as nossas
relações. Com ela podemos pedir socorro e ajuda. Demandamos aquilo de que
precisamos para viver. Ela é, em última instância, um pedido de amor.
A palavra é o nosso recurso, a nossa aposta na
vida comum. Quando falamos com alguém, abrimos o nosso universo particular
convidando a que nos escutem, olhem para nós. Ela invoca, pede, suplica. A
palavra permite que o outro saiba sobre nós e que fale conosco também. Convida
a travarmos relações. E esse convite pode ser aceito ou recusado. A palavra
lançada ao outro permite que ele diga o que pensa, concorde e discorde, dê
conselhos, saiba mais e fale com terceiros sobre aquilo que lhe foi dito. A
palavra dita jamais poderá ser recolhida, apagada. E pode ter consequências.
Muitas vezes, banalizamos seu valor. Ela destrói e cura, é bendita ou
maledicente. Ela declara guerras e amores, convida a entrar e também a sair de
nossa singular e íntima jurisdição. Difícil saber administrá-la, pois é precisa
como uma espada afiada. Por isso, silenciar nos protege melhor do que falar
muito. Assim reza um antigo provérbio que se acredita ser de origem oriental: "o falar é de prata, o silêncio é de ouro".
Desse modo, a palavra aparece como movimento em
torno do silêncio. A respeito, versa, com categoria, o poeta Wélcio de Toledo,
no livro Subversos (2015). Refiro-me
aos versos do poema “A palavra”, mais especificamente: “a palavra/gravada no
papel/realça o branco/das histórias/que ainda/estão por vir/o branco/do
papel/que se molda/atrai palavras/recheadas de histórias/prenhes de existir”. Pelas
palavras, as histórias são mais sobre o que a gente não sabe do que aquilo que
nós nos conhecemos. Falar é preencher os espaços em branco, levando em conta
que a noção muito cara de incompletude, pois todo dizer precisa da falta, todo
discurso e todo sujeito são incompletos. “As próprias palavras transpiram
silêncio” – revela a professora Eni Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (2007). E o
silêncio inspira palavras, acrescento.
A palavra abre sulcos na subjetividade e é
capaz de suspender bloqueios que nos mantiveram cativos por toda uma vida.
Ajuda-nos a suportar o peso da nossa própria dor de existir, seja de que origem
ela venha. Seja de uma fantasia ou de uma verdade vivida como desamparo,
desamor, rejeição ou violência que tenhamos experimentado, vinda da mão do
outro, ou que tenha sido sentida ou interpretada dessa maneira por nossa
fragilidade. A palavra deixa marcas de aluvião. Aluvião é a erosão na terra por
onde passamas águas de enxurrada. Depois, torna-se o caminho por onde cada
chuva ou enchente vai seguir. Nossa subjetividade é marcada por caminhos de
aluvião. Cada vez que vivenciamos algo que tenha um ponto em comum com o nosso
passado, é por esses caminhos que passarão as emoções. Repetiremos sentimentos
conhecidos e marcados, como se o atual apenas confirmasse o que já tínhamos
experimentado. E ali atua a palavra, criando novas passagens. O sentido da
palavra talvez seja dar aos seres humanos consciência da grandeza que ignoram
ter dentro de si.
Nós, seres humanos e falantes, precisamos de
ideais que refreiem nossa agressividade. Infelizmente, eles nem sempre
funcionam para todos. Necessitamos também de ética para nortear a nossa
conduta. Precisamos das leis, pactos criados para que seja possível a manutenção
da cultura, da vida em comum. A educação nos molda e nos ensina a nos espelhar
em ideais. Faz isso justamente porque o ser humano é diferente dos animais.
Somos capazes de mentir, odiar, agredir, roubar e matar não apenas por
necessidade básica da sobrevivência, mas para nos dar bem, mesmo que seja sobre
a desgraça dos demais. Por isso, precisamos das leis que defendam ideais como a
fraternidade, para que o mais forte não vença sempre e domine os mais fracos,
oprimindo-os. A fraternidade é um conceito ideal, difícil de praticar, mas
somos responsáveis por sua invenção, pois precisamos do outro e sabemos que em
nós existe grandeza, solidariedade e laços que nos unem pela via da palavra e
dos pactos possíveis.
* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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