segunda-feira, 4 de julho de 2016

A "FORÇA" DA GRANA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, o escritor e economista indiano Amartya Sen trouxe certo ânimo para o que entendemos como “meio de vida”. Consiste, por assim dizer, em acesso à capacidade a bens (incluindo bens materiais e sociais) e a atividades, requeridos para a sobrevivência de um indivíduo. Um meio de vida é sustentável quando pode ser capaz de se recuperar de situações de choque e de estresse, ao mesmo tempo em que pode manter ou melhorar a capacidade e os bens do indivíduo, agora e no futuro, e que não deteriora os recursos ambientais básicos.

Em busca da palavra exata, porém, o campo econômico engasga-se num horizonte curto demais. Como resultado, uma concessão desencadeada e reveladora de “cadeias que libertem”, como diria a poeta Ana Cristina César, observadora atenta e crítica desse paradoxo absurdo que insiste em tirar o nosso sossego, tendo em vista a corrida vigente pelo santo pão de cada dia. Metaforicamente, Caetano Veloso, em Sampa (1978), já alertava sobre o padrão cinzento predominante no desenvolvimento econômico que não leva em conta a insustentável leveza do ser: “da força da grana que ergue e destrói coisas belas/da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”. Esse “vulcão de neve” chamado economia nos transforma em “viras latas na via láctea”, como sugere o belo jogo de palavras articulado pelo músico Tom Zé.

Acionando novamente as reflexões de Amartya Sen, parece-me que o conceito de “capacidade” sugerido por ele pode até caber no cenário convencional de luta pela sobrevivência, mas o sentido nobre de viabilizar a convivência global ganha apenas impulso tímido. Capacidade, segundo o economista, refere-se à faculdade de possuir certas qualidades básicas, incluindo o que a pessoa é capaz objetivamente de fazer, como ela é capaz de enfrentar situações de estresse ou de choques e como ela faz uso das oportunidades de sobrevivência.

Capacidade, para mim, significa leitura poética, onde a verdade reside, é legenda se fazendo tecido, texto nunca acabado, como o que tecia Penélope à espera de Ulisses. O mesmo tecido que permanece inacabado hoje, neste tempo de carência e de indigência, “tempo em que os deuses fugiram e em que ainda não se pode falar do que virá”. Vejo mais capacidade na utopia do que na realidade. Utopia, no sentido que lhe empresta Ernest Bloch: “esperança concreta”. O discurso econômico se esconde no “absoluto matemático” para impor seu mandato na governança do mundo globalizado. Em torno do vil metal, o que se expressa em demasia é o que Michel Foucault chama de “panoptismo”. Isto é, vigilância, controle e correção imperam como as maiores características de nossa época. Porém, capacidade é doar saber para que todos, sem distinção, tenham poder.

Na lição do saudoso filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, em O Direito Administrativo e o Poder Judiciário (2001), todo o poder emana do povo porque a democracia se firma como “governo do controle e do consenso”. Um dos princípios básicos do Estado constitucional é a adoção do caráter público como regra e do segredo como exceção: “Que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo direto do povo ou controlado pelo povo”. Não é pérola jogada aos porcos o que bem expressa o artigo 37 da Constituição Federal de 1988: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Descolada da política, a economia vira patrimonialismo. A transparência perde espaço para a corrupção. Nos tempos da ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici, em viagem presidencial ao Nordeste, pronunciou a famosa frase: “Estado rico, país pobre”. Atualizando a declaração para os tempos de hoje: “Estado rico, país pobre e mercado mais rico ainda”. O dinheiro divide o mundo e o mundo não divide o dinheiro. Estamos vivenciando mais uma vez o que Dante Alighieri expressou no romance A Divina Comédia. Destaca-se na bela poesia dantesca a perspectiva humana: os personagens que povoam o mundo do além ocupam posições relacionadas ao papel que desempenharam em relação à cidade do narrador, a sua amada Florença. Para os amigos, o céu; para os inimigos, o inferno, com a incômoda companhia do diabo em pessoa! Perspectiva bem moderna, aliás. Para os amigos, leia-se: os relacionados com a construção da pólis dos nossos sonhos, a eterna lembrança da bem-aventurança. Para os que conspiravam contra o nosso ideal cívico, o inferno do esquecimento!

Ecos do inferno dantesco: Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50% restantes. A informação provém de uma instituição financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Como então relativizar o peso da economia sobre nossas cabeças? Ouvindo Martinho da Vila: “Dinheiro pra que dinheiro/Se ela não me dá bola/Em casa de batuqueiro/Só quem fala alto é viola...”. E aprendendo com Fernando Sabino, no saboroso livro O Encontro Marcado (1956): “Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário