Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Laureado com o
Prêmio Nobel de Economia em 1998, o escritor e economista indiano Amartya Sen
trouxe certo ânimo para o que entendemos como “meio de vida”. Consiste, por
assim dizer, em acesso à capacidade a bens (incluindo bens materiais e sociais)
e a atividades, requeridos para a sobrevivência de um indivíduo. Um meio de
vida é sustentável quando pode ser capaz de se recuperar de situações de choque
e de estresse, ao mesmo tempo em que pode manter ou melhorar a capacidade e os
bens do indivíduo, agora e no futuro, e que não deteriora os recursos
ambientais básicos.
Em busca da palavra
exata, porém, o campo econômico engasga-se num horizonte curto demais. Como
resultado, uma concessão desencadeada e reveladora de “cadeias que libertem”,
como diria a poeta Ana Cristina César, observadora atenta e crítica desse
paradoxo absurdo que insiste em tirar o nosso sossego, tendo em vista a corrida
vigente pelo santo pão de cada dia. Metaforicamente, Caetano Veloso, em Sampa
(1978), já alertava sobre o padrão cinzento predominante no desenvolvimento
econômico que não leva em conta a insustentável leveza do ser: “da força da
grana que ergue e destrói coisas belas/da feia fumaça que sobe, apagando as
estrelas”. Esse “vulcão de neve” chamado economia nos transforma em “viras
latas na via láctea”, como sugere o belo jogo de palavras articulado pelo
músico Tom Zé.
Acionando novamente
as reflexões de Amartya Sen, parece-me que o conceito de “capacidade” sugerido
por ele pode até caber no cenário convencional de luta pela sobrevivência, mas
o sentido nobre de viabilizar a convivência global ganha apenas impulso tímido.
Capacidade, segundo o economista, refere-se à faculdade de possuir certas
qualidades básicas, incluindo o que a pessoa é capaz objetivamente de fazer,
como ela é capaz de enfrentar situações de estresse ou de choques e como ela
faz uso das oportunidades de sobrevivência.
Capacidade, para
mim, significa leitura poética, onde a verdade reside, é legenda se fazendo tecido,
texto nunca acabado, como o que tecia Penélope à espera de Ulisses. O mesmo
tecido que permanece inacabado hoje, neste tempo de carência e de indigência,
“tempo em que os deuses fugiram e em que ainda não se pode falar do que virá”.
Vejo mais capacidade na utopia do que na realidade. Utopia, no sentido que lhe
empresta Ernest Bloch: “esperança concreta”. O discurso econômico se esconde no
“absoluto matemático” para impor seu mandato na governança do mundo
globalizado. Em torno do vil metal, o que se expressa em demasia é o que Michel
Foucault chama de “panoptismo”. Isto é, vigilância, controle e correção imperam
como as maiores características de nossa época. Porém, capacidade é doar saber
para que todos, sem distinção, tenham poder.
Na lição do saudoso
filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, em O Direito Administrativo e o Poder Judiciário (2001), todo o poder
emana do povo porque a democracia se firma como “governo do controle e do
consenso”. Um dos princípios básicos do Estado constitucional é a adoção do
caráter público como regra e do segredo como exceção: “Que todas as decisões e
mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano
foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo
direto do povo ou controlado pelo povo”. Não é pérola jogada aos porcos o que
bem expressa o artigo 37 da Constituição Federal de 1988: “a administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Descolada da
política, a economia vira patrimonialismo. A transparência perde espaço para a
corrupção. Nos tempos da ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici,
em viagem presidencial ao Nordeste, pronunciou a famosa frase: “Estado rico,
país pobre”. Atualizando a declaração para os tempos de hoje: “Estado rico,
país pobre e mercado mais rico ainda”. O dinheiro divide o mundo e o mundo não
divide o dinheiro. Estamos vivenciando mais uma vez o que Dante Alighieri
expressou no romance A Divina Comédia.
Destaca-se na bela poesia dantesca a perspectiva humana: os personagens que
povoam o mundo do além ocupam posições relacionadas ao papel que desempenharam
em relação à cidade do narrador, a sua amada Florença. Para os amigos, o céu;
para os inimigos, o inferno, com a incômoda companhia do diabo em pessoa!
Perspectiva bem moderna, aliás. Para os amigos, leia-se: os relacionados com a
construção da pólis dos nossos sonhos, a eterna lembrança da bem-aventurança.
Para os que conspiravam contra o nosso ideal cívico, o inferno do esquecimento!
Ecos do inferno
dantesco: Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida
no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50%
restantes. A informação provém de uma instituição financeira respeitada
mundialmente, o banco Credit Suisse.
E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A
pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos
procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Como então
relativizar o peso da economia sobre nossas cabeças? Ouvindo Martinho da Vila:
“Dinheiro pra que dinheiro/Se ela não me dá bola/Em casa de batuqueiro/Só quem
fala alto é viola...”. E aprendendo com Fernando Sabino, no saboroso livro O Encontro Marcado (1956): “Fazer da
queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um
encontro”.
* Professor das Faculdades Ascensão e
JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela
Faculdade de Letras da UFMG.
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