segunda-feira, 24 de agosto de 2015

GORDINHO SALIENTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), feita pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, acaba de revelar que mais de 56,9% dos brasileiros com mais de 18 anos têm excesso de peso. Deles, 20,8% são obesos. Sem querer atenuar a gravidade dos dados, urge sim contemplá-los, porém sem que eles se transformem em um dedo acusador dos abusos do copo e do garfo, ampliando, assim, os efeitos nefastos da “gordofobia”. Para tanto, convém salientar, por exemplo, as façanhas e proezas de um “gordinho saliente” que vem arrebentando a boca do balão nos gramados futebolísticos. 

Direto do túnel do tempo, desponta um memorável Fla x Flu, que marcou a estreia de Walter, ex-Goiás, com a camisa tricolor. No segundo tempo, o artilheiro entrou em campo e, com estilo, selou a vitória fluminense por 3 a 0. Assim, narrou o lance Luiz Carlos Júnior, pelo canal SporTV: “Olha o Chiquinho! Pro Walter! Goooool! É do Fluminense! É do estreante Walter. Um jogador raro. Acima do peso, mas um jogador de um raro faro de finalização, de precisão, de técnica”. Mais uma vez, o tipo físico sai na frente do talento, quando o assunto é destacar o desempenho futebolístico de Walter. 

O atacante foi eleito um dos craques da seleção do Brasileirão-2013, sendo autor de dribles, jogadas e passes magistrais, além de gols bonitos e importantes. Apresentou, assim, ótimo desempenho, contribuindo, naquela oportunidade, para a bela campanha do Goiás: com 59 pontos, o time ficou em 6º. lugar, na competição futebolística mais importante do país. Dos 48 gols marcados pelo time esmeraldino, Walter balançou a rede do adversário 13 vezes, o que lhe rendeu a 5ª. colocação na artilharia do torneio. Nada mau para um jogador perseguido pela mídia e opinião pública por conta de ter o corpo considerado fora dos padrões atléticos. Infelizmente, chama mais atenção o porte avantajado de Walter do que o talento do atacante. Acontece que o futebol é o mais democrático dos esportes, justamente por acolher as habilidades e competências presentes nos variados tipos físicos que compõem a espécie humana.

Além de habilidoso, merecem ser destacadas como virtudes do craque a autoconfiança e a ousadia. Sabiamente, Walter respondeu à ‘crítica maldosa’ com um futebol de primeira, demonstrado nos gramados por onde passa. Fiquei mais fã do jogador, quando Walter se recusou a comemorar seu gol contra o Atlético-PR, em sinal de protesto por conta da violência promovida por torcedores esmeraldinos, no estádio Serra Dourada, em Goiânia - GO. Com a atitude, Walter mostrou que o mundo das quatro linhas não pode ficar indiferente às ações truculentas que ocorrem fora dos gramados e colocam o Brasil como bicampeão mundial na estatística de mortes em confrontos no futebol. 

Fora os insultos pejorativos projetados sobre o jogador, a polêmica em torno do preparo físico de Walter mostra que a exceção não está morta, e que o diferente encontra ainda seu lugar. Admiro quem diz não, quem não se enquadra, quem está fora e não segue todas as normas. Quando parecia reinar a mesmice no futebol, surge alguém para nos redimir. Contrariando a noção dominante da boa forma física, Walter desmente a regra e supera em talento o exército de musculosos atletas que passam o dia nos aparelhos de ginástica dos clubes tentando, não aprender mais sobre o jogo de bola, mas conquistar mais músculos.

Alguns críticos se arvoram em argumentar: “se com esse peso Walter faz tudo o que faz, imagine-se o que não faria se estivesse no peso ‘ideal’?”. Parece lógico, mas não é. O jogador gastou a bola no Brasileirão exatamente porque tem o corpo que tem. Outro argumento é que nos dias de hoje um atleta de nível não pode ter aquele peso. Jogador de futebol não é simplesmente um atleta. A parte física tem o seu papel, mas sem a parte técnica, teremos apenas um punhado de brutamontes correndo atrás de uma bola. Prefiro acompanhar a categoria de Walter, fazendo gols de placa e jogadas brilhantes para a alegria dos apaixonados pelo esporte bretão. “Viva o Gordo!”, como diria Jô Soares, em seu famoso programa humorístico, exibido pela Rede Globo, nos anos 80. 

Esta história do mundo real me fez lembrar um livro de literatura infanto-juvenil chamado Gorda ou Magra, Abracadabra (1985), escrito por Giselda Laporta. Esperava encontrar ali uma tentativa ousada de tratar as noções de aparência e vaidade, ou seja, uma apurada discussão sobre a rede de preconceitos que costumam sustentar os padrões estéticos da sociedade. As personagens Carla e Rita são duas meninas que não estão satisfeitas com sua aparência. Carla é gorda e tem como apelido “balão”. Ela quer ser magra. Rita é magra, sendo chamada, por isso, de “palito”. Quer engordar. Galatéia e Bruvenildes são as duas bruxinhas que vão realizar os desejos de Carla e Rita. Gorda ou magra, abracadabra!

Feito o encanto, infelizmente, o desenvolvimento do enredo preferiu reforçar ainda mais as noções de que emagrecer quer dizer “encolher” (no caso de Carla) e engordar significa “estufar” (no caso de Rita), como preceituam os estereótipos de plantão. Quando a mãe de Rita vê sua filha, logo reage: “O que aconteceu, Jesus do céu? Você foi picada de abelha? Tá com alegria? Vamos direto pro pronto-socorro!”. Essa passagem monta a ideia de que gordo é ser inchado e doente. A mãe de Carla, quando vê a filha magra, grita: “Acuda, minha Nossa Senhora, a Carla murchou!”. Magreza serviu de referência para um estado esquelético, malnutrido. Ao invés de cultivar o respeito à diversidade biotípica, a obra de Giselda Laporta se deixou contaminar por caminhos estigmatizados. Observamos semelhante descuido no tratamento conferido ao talentoso jogador Walter, vítima da tirania dos sarados que ditam, dentro e fora das quatro linhas, as normas estéticas e atléticas. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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