terça-feira, 25 de agosto de 2015

MALUCO BELEZA E MALUCO DUREZA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Está presente no álbum O dia em que a Terra parou (1977) uma das maiores lições de saúde mental já receitadas. Refiro-me à canção Maluco Beleza, de Raul Seixas e Claudio Roberto, na qual os mencionados compositores destacam: “Enquanto você/Se esforça pra ser/Um sujeito normal/E fazer tudo igual/Eu do meu lado/Aprendendo a ser louco/Um maluco total/Na loucura real/Controlando/A minha maluquez/Misturada/Com minha lucidez/Vou ficar/Ficar com certeza/Maluco beleza”. Ou seja, para conseguir a almejada paz, nas diferentes esferas da vida, é preciso passar por alguns momentos de caos. Alcméon, filósofo grego que viveu no século VI antes de Cristo, diria que a saúde é o equilíbrio de forças contraditórias.

Considerando os personagens da canção Maluco Beleza, enquanto “você” traz em si a ilusória sensação doentia de estabilidade e permanência, “eu do meu lado” busca de tirar proveito do equilíbrio dançarino de forças. Costumo dizer que “você” é o maluco dureza da história, pois pensa de forma protocolar, achando que nunca se contradiz, sendo regido apenas pela lógica e se agarrando firmemente em suas verdades imutáveis. O maluco dureza, vestido com essa camisa de força racional, encara os dias em total estado de insegurança, desprotegidos por uma guerra que começa já dentro da própria cabeça. Algemado em suas próprias convicções, tenta, sem sucesso, se equilibrar em um pensamento único, sem se movimentar. Ao contrário, o maluco beleza, o sadio, compreende que a paz procurada não está na previsibilidade e na constância, e sim no reconhecimento de que ambas inexistem: nada é previsível nem constante. Segundo Martha Medeiros, em Feliz por nada (2011), “a pessoa de mente saudável é aquela que, sabedora da sua impotência contra as adversidades, não as camufla, e sim as enfrenta, assume a dor que sente, sofre e se reconstrói, e assim ganha experiência para novos embates, sentindo-se protegida apenas pela consciência que tem de si mesma e do que a cerca – o universo todo, incerto e mágico”.

Caminhar é um exercício sequencial de perdas e recuperações do equilíbrio. Como faz o maluco beleza, bailando sobre as cordas bambas do chão. Também podemos fazer a leitura de quem quer estar permanentemente equilibrado: no caso, o maluco dureza que, seguro, procura não sair do lugar. Acomodação gera estagnação. A vida cobra movimento. Isso faz muito sentido, pois para inovar, ser criativo, abrir novas possibilidades, é necessário fazer diferente, o que equivale a sair da "zona de conforto", uma vez que ela se refere ao ato de acomodar-se e fazer coisas apenas dentro do conjunto de hábitos, o que é muito conservador. O problema do hábito é que ele é inimigo da novidade, e, sem esta, não há avanço, surgindo, assim, ‘o mais do mesmo’. Alcançamos a beleza e deixamos a dureza quando, além de fundamentar hábitos produtivos, abrimos espaço para o diferente, para a ousadia saudável, aquela que surpreende, mesmo se, às vezes, erramos, tropeçamos, caímos. É preciso ter fé no poder de superação. Ousar quantas vezes for preciso.  

No universo, a nítida tendência à desordem pode ser lida como aliada, se compreendemos melhor seu princípio constitutivo chamado entropia. O legal, no entendimento da entropia (em grego, significa transformação), é que, quando deixamos de colocar energia, a tendência é a desordem, o caos. Em outras palavras, não dá para parar de gerar algum movimento. Armado até os dentes contra qualquer instabilidade, quem fica parado assiste à desorganização de seus sistemas. Nasce aí uma proposta equivocada de normalidade que vem imperando sobre o nosso horizonte, provocando adoecimentos mentais que precisam de um outro registro de análise para serem melhor tratados. Por isso, Dalmiro Manuel Bustos, em Novos rumos em psicodrama (1992), chegou em dado momento declarar que:

“Sempre fugi do conceito psiquiátrico clássico de enfermidade mental. Como já me manifestei anteriormente, jamais compreendi uma pessoa através de seu sintoma ou diagnóstico psicopatológico. A loucura só existe no olhar de quem a teme. Se não se teme, não é loucura: é sofrimento, luta, mas não é loucura. Só o medo pode levar-me a afastar alguém rotulando-o”. 

O que disse Bustos ganha exemplo com o depoimento de Maura Lopes Cançado, em Hospício é Deus (1979). Neste diário em que conta o dia-a-dia da sua internação psiquiátrica, a escritora e jornalista descreve seu sofrimento com a frieza da ciência pautada por códigos reducionistas. Revela esse sentimento a partir de uma metáfora instigante – a da mala cheia de etiquetas e rótulos: “Terminarei pela vida como essas malas, cujos viajantes visitam vários países e em cada hotel por onde passam lhes pregam uma etiqueta: Paris, Roma, Berlim, Oklahoma. E eu: PP, Paranóia, Esquizofrenia, Epilepsia, Psicose Maníaco-Depressiva, etc. Minha personalidade mesma será sufocada pelas etiquetas científicas”.

Nessa passagem, Cançado vê sua “personalidade mesma” sufocada pelas “etiquetas científicas”. No entanto, ao conseguir se constituir como observadora distanciada do “rótulo científico”, ela se preserva de um enquadramento por inteiro. Cançado posiciona-se, com esse comentário, na dobra, no interstício, de sua relação com os médicos. Sente o peso da redução de sua singularidade a um sistema teórico, mas consegue o destacamento necessário para submetê-lo à sua reflexão. Este posicionamento se deu graças à postura arrojada, corajosa e inteligente de uma "maluca beleza" que problematizou, em seu livro, os abusos sistemáticos cometidos pelos "malucos durezas" de plantão. 

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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