terça-feira, 25 de agosto de 2015

BOM DE CRER

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Em Tudo que está solto (2010), Éle Semog lança luz interessante para o tratamento da espinhosa relação envolvendo a cultura do narcisismo e a formação continuada da identidade. A respeito, refiro-me especificamente ao poema “Bom de crer”, cujos versos se dispõem desta feita: “O meu Deus é negro,/tem nariz chato/e cabelos carapinhados./E sendo o principal,/o meu Deus/é melhor que os outros/porque é finito,/não impõe castigo/e só guarda segredo/do que eu não digo./O meu Deus é sensato/criou o que quis,/exceto o pecado,/e regula a vida/pelo fim inacabado,/inclusive o começo./O meu Deus só precisa/de mim e dispensa/futuro, passado,/tempo e espaço./O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.

O escrito de Semog traz à tona um fato importante: sem narcisismo não haveria cultura. Antes de atribuir-lhe qualquer juízo de valor, é necessário considerá-lo no seu caráter primário atribuído por Sigmund Freud, ou seja, “de um complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva”. Os versos de “Bom de crer” dizem respeito ao próprio cerne da cultura que promete ao sujeito (voz poética) um lugar, um estatuto, um “ser alguém”, ser indivíduo. Abordam as coações sejam religiosas, sociais, étnico-raciais, psíquicas que se transformaram em “segunda natureza”, preço que pagamos pelo processo de civilização. E, por último, expõem, visceralmente, a vontade de “ser alguém” expressa pelo eu-poético que busca diferenciar-se, ao reivindicar a autonomia e, ao mesmo tempo, uma sociedade igualitária e justa.

Pressupor uma união feliz entre indivíduo e cultura é também escamotear o sofrimento e a dominação. Freud, em Sobre o narcisismo (1914), pôde denunciar isto, mas não é equivocado dizer que ficou do lado da cultura em detrimento do indivíduo: “É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa”. Poeticamente, Semog dialoga com o alerta freudiano, munido de uma autocrítica repleta de ironia inteligente: “O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.

Lendo na íntegra o poema de Semog, fica o gosto de encruzilhada na indagação: Se a civilização tem de ser defendida contra o indivíduo, quem defende o indivíduo da civilização?  O discurso do “ser alguém” pode ser entendido pela necessidade de nos adaptarmos ao processo civilizatório atendendo às suas exigências de controle dos instintos e ao mesmo tempo, não sermos aniquilados por ele. Ou seja, estamos a favor e contra este processo que não é sinônimo de progresso simplesmente. Progresso e regressão caminham juntos. O homem ao dominar a natureza – essência do conceito de cultura – construiu uma segunda natureza: o controle social e psíquico que a humanidade se impôs. Ser indivíduo é diferenciar-se da natureza e ao mesmo tempo resistir a uma segunda natureza também coercitiva e indiferenciadora.

Quando o eu-poético afirma que seu Deus é negro e tece suas inúmeras características virtuosas, Semog se opõe à civilização hegemônica, substrato da natureza não totalmente conformada e da marginalizaçäo daqueles que pouco receberam de benefícios civilizatórios, apresentando, portanto, na resistência à formação cultural dominante o seu momento de triunfo. Semog parece acreditar em uma 'divindade companheira' que incentiva o indivíduo a exercer sua humanidade de maneira autônoma, em sintonia com a emancipação subjetiva e a expressão da alteridade. Semog, “capoeirista da linguagem”, escapa do “individualismo possessivo” que, segundo o professor estadunidense, Thomas S. Popkewitz, em Reforma educacional (1997), condena os indivíduos a se sentirem proprietários exclusivos de suas capacidades. Em uma linguagem mais referencial, a poesia de Semog chama a atenção para a seguinte distinção: a individualidade é um conceito absolutamente positivo. Já o individualismo é o exagero da individualidade e ele se aproxima do egoísmo. Como uma pessoa se torna tão autoconfiante e apaixonada pela própria imagem - a ponto de desprezar os outros?  Isso estilhaça a capacidade de convivência coletiva digna.

O texto de Semog pode ser interpretado, considerando dois grandes temas: a autoestima e a vaidade. O eu-poético, graças ao exercício de autocrítica, consegue perceber os perigos da atitude narcisista mais trivial. Na mitologia grega, Narciso era um jovem que se apaixonou por seu reflexo na água. A palavra “narcisismo” origina-se justamente desse mito, e é utilizada na psicologia comum para descrever pessoas autocentradas, com grande apreço por si próprias e, não raro, demonstram dificuldades em manter relacionamentos sociais. O narcisismo se caracteriza por uma visão de si inflada, sentimento de superioridade e excessiva autoadmiração. Logo, a autoestima projeta-se como amor próprio; enquanto a vaidade se revela como amor impróprio. A impropriedade, nesse caso, está muito bem expressa na ressalva feita por Semog em seu poema: “O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário