domingo, 5 de julho de 2015

PELO AMOR DE CARTOLA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Salvo melhor juízo, eis as principais afirmações que sustentam o credo amoroso dominante: 1) o amor é um sentimento natural e universal, presente em todas as épocas e culturas; 2) o amor é um sentimento surdo à “voz da razão” e incontrolável pela força da vontade; 3) o amor é a condição sine qua non da máxima felicidade a que podemos aspirar. O ideário amoroso ressalta a importância da espontaneidade e relega a razão a segundo plano. No entanto, a prática amorosa desmente estas idealizações. Amamos com sentimentos, mas também com a razão e julgamentos. Os eleitos, os escolhidos, possíveis objetos de amor, obedecem a certas condições para serem aceitos, como: classe social, grau de escolaridade, valores, etc., que geralmente são chamadas de afinidades. As expectativas amorosas são altamente idealizadas e levam a sentimentos de frustração e impotência. Cabe ressaltar que as idealizações, segundo Nietzsche, são manifestações de uma concepção metafísica de mundo que desqualifica esta existência tal como ela é. Desta forma, a idealização é uma construção imaginária que supõe a existência de outro mundo, de outra vida para além desta. O projeto de Nietzsche foi desmistificar estas idealizações que se escondem sob a moral, já que se apresenta como dicotomias simplificadoras, entre bem e mal, pretendendo sempre excluir o que é considerado anticonvencional.

Para Elisabeth Badinter, no livro Um é o outro (1986), o amor ideal é a experiência emocional cuja virtude é nos proteger contra a solidão e tem sua fonte no respeito e ternura pelo outro. Porém, a autora adverte, vivemos numa cultura narcísica, inibidora da experiência amorosa. A tese de Zygmunt Bauman, expressa, em Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2004), que o sentimento em destaque é ambivalente, incerto e inevitavelmente traz sofrimento. Segundo este autor, nesse mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre a alegria e a dor e não há como determinar quando um se transforma no outro. Para Bauman, a virtude do amor reside na balança entre liberdade e responsabilidade. Acrescentaria, ao ouvir a sábia canção Autonomia (1977), composta pelo poeta-sambista Cartola, que, longe de servir como mote para o discurso da servidão voluntária, como pensava Etienne de la Boétie, o amor se realiza, em termos vivenciais, na plena autonomia a ser estimulada como virtude transitada em diálogo e respeito: “É impossível nesta primavera, eu sei/Impossível pois longe estarei/Mas pensando em nosso amor/Amor sincero/Ai, se eu tivesse autonomia/Se eu pudesse gritaria/Não vou, não quero/Escravizaram assim um pobre coração/É necessária nova abolição/Pra trazer de volta a minha liberdade/Se eu pudesse gritaria, amor/Se eu pudesse brigaria, amor/Não vou, não quero”.

Compreendo a “nova abolição” sentimental proposta por Cartola como sendo uma crítica da idealização do amor-paixão romântico, pois sem questionar esse modelo afetivo, tempos poucas chances de experimentar uma vida sexual, sentimental ou amorosa mais livre. Quando a voz poética, presente na canção do poeta sambista, recusa-se a gritar e a brigar como formas impositivas de afirmação, diante do vínculo amoroso, Cartola traz à baila o fato de que é preciso negociar constantemente entre as pulsões egoístas, ou seja, o amor a si e o desejo de ter uma relação com o outro. A relação com o outro pode pressupor a disponibilidade para a troca e o compartilhamento das experiências, implicando em um desprendimento dos interesses individuais em favor da manutenção da união. A respeito, quando elaborou sua teoria sobre as transformações da intimidade, Anthony Giddens, em As consequências da modernidade (1991), salienta que a confiança nas pessoas é erigida sobre a mutualidade de resposta e envolvimento; a fé na integridade do “outro” se apresenta como fonte primordial para o sentimento de autenticidade do “eu”. Convém ressaltar que a confiança amorosa costuma ser ambivalente, e a possibilidade de rompimento está sempre mais ou menos presente, conforme poeticamente destaca Vinícius de Moraes, em Soneto de Fidelidade (1938): “Eu possa me dizer do amor (que tive):/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure”. 

Os laços pessoais podem ser rompidos, e os laços de intimidade podem voltar à esfera dos contatos impessoais – no caso amoroso rompido, o íntimo torna-se de súbito novamente um estranho. A exigência de “se abrir” para o outro que as relações pessoais de confiança pressupõem a injunção de nada ocultar do outro, misturam renovação da confiança e ansiedade profunda. A confiança pessoal exige um nível de autoentendimento e autoexpressão que deve ser em si uma fonte de tensão psicológica. Pois a autorrevelação mútua é combinada com a necessidade de reciprocidade e apoio; estas duas coisas, contudo, são freqüentemente incompatíveis. Tormento e frustração entrelaçam-se com a necessidade de confiança no outro como o provedor de cuidados e apoio. 

Com isso, vivemos numa moral dupla: de um lado, a sedução das sensações; de outro, a saudade dos sentimentos. Amorosamente, estamos diante de um misto de filosofias: “até que a morte nos separe” com “até que a morte do amor nos separe”. Nesse sentido, Jurandir Freire Costa, em Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico (1998), bem formula: “Queremos um amor imortal e com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua moderna vicissitude”. Amor, portanto, não é segurança, é “um cuidar que se ganha em se perder”, lembra Camões. Trata-se igualmente de livrar o amor do encerramento domesticado e do devotamento tradicional. Quando amamos, juntamos paixão e amizade, tirando, assim, os coelhos da cartola da solidão. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

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