quinta-feira, 2 de julho de 2015

ELETROMAGNITUDE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


De primeira, sem deixar a bola cair, um chute impressionante. Lá onde a coruja dorme. Obra-prima assinada por Gilberto Mauro. Gol de quem conhece. Pura eletromagnitude deste pianista bom de verso e prosa, ao dizer: “A arte doa. O pensamento liberta. Só o amor e o humor salvam. O resto é paliativo”. O que a arte doa? A apreensão do belo. A beleza pertence à esfera da sensibilidade. Os diálogos de Platão afirmam que a experiência da beleza é uma das grandes vias para compreender quem somos e o que nos rodeia. Seria o belo como equivalente do bem, verdadeiro e uno. A estética, com a filosofia moderna, concentrou-se no parecer subjetivo diante da arte. Immanuel Kant mostrou como a beleza depende da apreciação: sem subjetividade, não há reconhecimento do belo. A reação do sujeito é tão importante quanto as características do objeto. Uma obra de arte não é representação de uma coisa bela, mas a representação bela de uma coisa. 

A arte é encontro com o ser e, nesse sentido, é poiesis, criação que revela e desvela o ser. Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de a arte nos conduzir a uma experiência primordial. A experiência estética recria o real, dá-lhe outro sentido, outra dimensão, abre novos horizontes. Reconfigura o mundo, pois o artista não quer copiar a realidade. Mesmo a mais aparente desordem revela sempre outro modo de dizer o mundo. Uma pintura, uma escultura, um poema ou uma sinfonia não são uma mera distração, um simples passatempo, mas sim um modo de o artista se comunicar, ao pôr em comum vários sentidos. A beleza exige uma consciência que a aprecie, contudo, a realidade é que transborda a consciência. Torna-se interessante afirmar que a beleza resulta da interação entre a consciência e as coisas.

O mundo da arte é o mundo do singular, do único, do exclusivo. Ao contrário da técnica, que é o mundo do prático e do genérico. A arte nos liberta da redução ao imediato e da fúria do utilitarismo. Ela é a criação de um mundo intemporal dentro do mundo das coordenadas físicas, pois visa contemplar a seguinte dinâmica: “tudo que se faz eterno é terno”, conforme destaca o próprio Gilberto Mauro, em sua música Um canteiro (2006). A arte é a expressão da reflexibilidade, da inteligência, da emoção e da imaginação. Caso contrário, “computadores fazem arte/artistas fazem dinheiro”, como cantava Chico Science, no álbum Da lama ao caos (1994). A distinção entre a beleza desinteressada da criação artística e a finalidade de objetos tecnológicos remonta a Aristóteles. Aquilo que designamos quando falamos de arte é poiesis. A techné visa a utilização na vida cotidiana. Marcel Duchamp, ao apresentar um urinol de louça, a que deu nome de A Fonte, numa exposição de 1917, em Nova York, quebrou a noção da obra de arte como produto, esteticamente bela, emocionalmente profunda. Nascia o conceito de ready-made, fazendo arte com objetos industrializados: apropriar-se de uma coisa já feita e dar-lhe título e um sentido alegórico, com o propósito de chocar o espectador, como desde sempre fizeram as vanguardas artísticas. Diz-se que, após Duchamp, tudo pode ser arte: descontruído o conceito, as fronteiras da arte ficam fluidas, imprecisas e ambíguas.

Por excelência, a arte é reconhecida, através dos tempos, como atividade do livre pensar criativo. Por que pensar é libertário, considerando o que disse Gilberto Mauro? Porque refletir tem como horizonte a busca da verdade por meio de caminhos exercitados pelo benefício da dúvida especulativa. O pensamento precisa ser educado e emitido para o bem, pois quem pensa com elevação é bem sucedido em seus empreendimentos honestos. Temos a necessidade existencial de fazer perguntas, de conhecer a nós mesmos, de incomodar o status quo das coisas e do mundo. Metaforicamente, pensar permite escalar as alturas e mergulhar nas profundezas, sem perder o sentido da superfície como noção de parâmetro especulativo. O pensamento se alimenta do raciocínio, enquanto processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto pela investigação. Implica descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto é mantido como verdade. 

Considerando a funcionalidade reflexiva e o experimentalismo artístico expostos, chegamos, na esteira de Gilberto Mauro, a considerar também que a salvação maior da humanidade se encontram no amor e no humor. Em outras palavras, considerar autenticamente que a vida vale a pena ser vivida, considerando tanto prazeres como desprazeres, depende fundamentalmente da nossa capacidade de amar. O humor é fundamental para suavizar dores e ressaltar primores, isto é, “louvando o que bem merece deixando o que é ruim de lado”, conforme aconselham Gilberto Gil e Torquato Neto, em Louvação (1967). No amor, encontramos a expressão mais completa de nossa possibilidade de entrega, doação e, na mesma medida, nossa maior capacidade de receber, compreender, aceitar e desejar outra pessoa escolhida por nós e que, por sua vez, nos escolheu. 

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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