quinta-feira, 2 de julho de 2015

COISAMENTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A citação é longa, mas revela a abreviação da vida: “Em regra, partem do regime econômico as transformações básicas que repercutem, tarde ou cedo, em toda a estrutura. Isto acontece, porque naquele plano das relações dos homens com as coisas materiais, as inovações são estimuladas e facilitadas, sobretudo, por um critério de eficiência e utilidade. A necessidade de produzir e reproduzir constantemente as condições de existência e de sobrevivência; a tecnologia e os instrumentos de domínio e utilização do mundo físico; o ‘meio artificial’, criado pelo trabalho e pela técnica, que se superpõe ao meio natural e singulariza o caráter ativo da adaptação humana; toda a base material das relações humanas é criada e historicamente transformada sob o império da adaptação e da satisfação de necessidades, o que torna prioritários, neste plano, os critérios de utilidade e eficiência, permitindo que do regime econômico partam as mais fortes impulsões às transformações sociais”.

Continua Costa Pinto, em Sociologia e Desenvolvimento (1980), dizendo: “Nos outros planos da estrutura social encontramos as relações dos homens entre si e as instituições e valores que delas resultam como produtos sociais e históricos. Aqui, os conteúdos emocionais são muito mais profundos e essenciais, as ações e reações se regulam por normas e princípios de significação valorativa e são maiores as resistências às transformações. Não seria preciso argumentar, longamente, para demonstrar por que uma sociedade substitui mais facilmente uma máquina do que uma norma, um princípio ou uma atitude diante da vida”.

A economia passa a vigorar como uma espécie de natureza que tem as suas próprias leis e que se impõe à vontade de cada um de nós. A economia não é boa, nem má, não deseja o bem nem o mal a ninguém. A economia é, simplesmente, uma ordem de circulação de riquezas, de produção de bens de consumo. Não diz nada a respeito dos indivíduos. A “economia política”, na qual a economia estava posta a serviço da política, transformou-se pouco a pouco em simples economia, relegando a política a um papel subalterno. Havendo dissolvido a substância que esta ainda possuía, a economia passou a reinar absoluta com suas leis próprias, objetivas e racionais, isto é, leis que têm a razão de ser no próprio sistema produtivo, indiferentes aos desejos e às situações individuais. 

Penso que o conceito marxista de reificação expressa o encadeamento da ruptura excessiva entre ética e política e política e economia, em que o indivíduo se tornou mero agente de uma ordem de coisas maior do que ele, que lhe impõe uma vontade cega e impessoal sob a forma da necessidade férrea das leis do mercado, à qual estamos todos submetidos. Tal é a inevitável reificação que ocorreu no mundo humano, no qual todos os homens se viram transformados em coisas, agentes e instrumentos de produção dos bens necessários à vida. A produção da riqueza, necessária para a subsistência humana, não é reificante. O núcleo duro da reificação consiste na independência com que funciona esse mecanismo, indiferente a qualquer sentimento subjetivo. Ele estimula, porém, o consumo ilimitado e insaciável como condição de sua existência. A respeito, poetiza Carlos Drummond de Andrade, em “Eu, etiqueta” (1984):

“Onde terei jogado fora/meu gosto e capacidade de escolher,/minhas idiossincrasias tão pessoais,/tão minhas que no rosto se espelhavam/e cada gesto, cada olhar/cada vinco da roupa/sou gravado de forma universal,/saio da estamparia, não de casa,/da vitrine me tiram, recolocam,/objeto pulsante mas objeto/que se oferece como signo de outros/objetos estáticos, tarifados./Por me ostentar assim, tão orgulhoso/de ser não eu, mas artigo industrial,/peço que meu nome retifiquem./Já não me convém o título de homem./Meu nome novo é coisa./Eu sou a coisa, coisamente”.

Cabe salientar que o último verso do poema “Eu, etiqueta” – “eu sou a coisa, coisamente” – é emblemático para compreensão desse quadro de submissão mercadológica e pode ser entendido a partir dos seguintes sentidos: a) a personificação da coisa, isto é, “a coisa” é o modo de ser do eu-lírico, se entendermos a relação entre “coisa” enquanto substantivo e “coisamente” enquanto advérbio; b) a coisificação da mente, ou seja, a transformação da capacidade subjetiva do eu-lírico em propriedade do objeto, se nos atermos ao neologismo coisamente (coisa + mente); c) a mentalização da coisa, isto é, o registro dela na “mente” do eu-lírico é tão ressaltado pelos artifícios da sociedade de consumo, a exemplo do marketing propagandístico, que “a coisa” chega ao ponto de ocupar o centro das atenções do sujeito; d) a mentira ou a artificialidade presente no mundo das coisas, se levarmos em consideração a relação entre “coisa” enquanto sujeito e a sua ação correspondente: “mente”, na condição do verbo “mentir”.

Na dança macabra das coisas sólidas, adverte o músico Alceu Valença, em Coração bobo (1980): “a gente se ilude, dizendo: ‘já não há mais coração!’”. Os sentimentos expressam a capacidade que possui o ser humano de conhecer, compreender, sentir e compartilhar emoções que ocorrem em sua intimidade. Eles geram a afetividade, quando estão sob a ação da vontade dignificada, tornando a pessoa saudável emocionalmente. Quando desequilibrados pelo materialismo, a desrazão torna a existência muito difícil de ser suportada, pois transformamos afeto em apego, impedindo que as emoções nobilitantes façam com que a vontade se eduque e o homem pense melhor. Há sempre o pensamento, o sentimento e a vontade interligados, que somos convidados a direcionar eticamente para o bem, o bom e o belo. 


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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