Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Saudades do escritor Ariano Suassuna (1927-2014).
Munidos de sua obra, podemos assimilar melhor esses tempos difíceis de ajuste
fiscal. Mãos de tesoura parecem
governar a atual política econômica. É verdade que, em tempos de escassez de
recursos, os investimentos podem ser redirecionados, detectando as “gorduras
orçamentárias” que devem ser queimadas. Mesmo assim, estamos diante do maior
contingenciamento de recursos da história em termos nominais: a equipe
econômica do Governo Federal anunciou o bloqueio de R$ 69,9 bilhões em gastos
no orçamento de 2015. O corte afetou ministérios importantes como das Cidades,
da Saúde e da Educação. Não adianta tratar o fogo com gasolina. Precisamos de
água: muita calma nessa hora. Ou, como diria o próprio Suassuna: saindo da
dicotomia pessimismo versus otimismo,
o caminho do meio para o temperamento social adequado reside na prática do
“realismo esperançoso”.
O realismo esperançoso contrapõe-se à projeção
antiquada de esperança como “desejo sem poder”. A esperança, como posição
passiva, se faz prejudicial, pois perde-se, nesta perspectiva, a ideia de ação.
A respeito, Chico Buarque, em Pedro
pedreiro (1965), critica o comodismo e a postergação como vícios
comportamentais que estimulam a pasmaceira generalizada: “Pedro pedreiro
penseiro esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar também/Para o bem de
quem tem bem/De quem não tem vintém/Pedro penseiro fica assim pensando/Assim
pensando o tempo passa/E a gente vai ficando pra trás/Esperando, esperando,
esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando aumento/Desde o ano
passado/Para o mês que vem/[...] Pedro pedreiro espera o carnaval/E a sorte
grande no bilhete pela federal/Todo mês/Esperando, esperando, esperando/Esperando
o sol/Esperando o trem/Esperando o aumento/Para o mês que vem/Esperando a
festa/Esperando a sorte/E a mulher de Pedro/Está esperando um filho/Pra esperar
também”.
Ariano Suassuna conferiu um sentido novo à
palavra esperança, ao torná-la princípio ativo da realidade em transformação.
Tal propósito muito se assemelha ao verbo “esperançar”, neologismo proposto por
Paulo Freire para representar a nobre causa de colocar a pessoa na posição de
“agente cidadão”. Para que o Brasil alcance a maturidade econômica,
impulsionando a vitalidade social, o escritor paraibano percebia a necessidade
de se reformar, pela raiz, a mentalidade patrimonialista nacional, via educação
problematizadora da cobiça e da avareza que nos corrompe historicamente. Pelo
caminho da ironia inteligente, Suassuna, na peça O santo e a porca (1979), oferece uma crítica contundente aos
costumes materialistas de teor ganancioso.
O início da “Imitação Nordestina de Plauto” se dá
com o diálogo entre Caroba e Euricão, o qual recebe a informação de que Eudoro
enviou-lhe uma carta pelas mãos do criado Pinhão. Por sua vez, a leitura da
carta, que se dará na sequência, desencadeará um sem fim de quiproquós. Exemplo
disso se encontra no primeiro ato da peça, em que Margarida, a filha, lê a
carta enviada por Eudoro, seu pretendente, ao pai avarento: “MARGARIDA – De
minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo de seu mais
precioso tesouro!/EURICÃO – Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso! Meteu na
cabeça que eu tenho dinheiro escondido e quer roubá-lo”.
Euricão, ao ouvir parte da carta, lida pela
filha, entende que o tesouro mencionado é seu dinheiro. Contudo, Eudoro se
refere a Margarida. Quando são confundidas Margarida e a porca, Dodó e
Margarida não associam o vocábulo “porca” ao objeto de madeira em que o velho
guardava seu tesouro; o entendimento de “porca” em seu sentido figurado, por
sua vez, acaba por desencadear um novo mal-entendido, haja vista que os jovens
pensam que o velho profere xingamentos à filha. Por trás da confusão semântica,
confundir a filha do avarento com a porca contribui para sua coisificação,
processo criticado por Ariano Suassuna como extremismo reificador.
Não é apenas a preocupação em defender sua
riqueza que atribui a Euricão tal aspecto. Ele tornou-se avaro em decorrência
de uma perda: “EURICÃO – [...] Mas parece que Santo Antônio me abandonou por
causa da porca. Que santo mais ciumento, é “ou ele ou nada”! É assim? Pois eu
fico com a porca. Fui seu devoto a vida inteira: minha mulher me deixou, a
porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem você me deram a sensação que a
porca dá. Ah, minha bela, ah, minha amada!”.
A porca, isto é, a avareza, passou a ocupar um
lugar de destaque na vida de Euricão a partir do momento em que perdeu a
mulher; trata-se de um elemento que supre uma lacuna, uma perda. O velho
avarento, não tendo mais o seu tesouro, haja vista que descobre a perda de
validade do dinheiro, apega-se a Santo Antônio como o único parâmetro de
conforto que lhe resta. Em O santo e a porca,
Ariano Suassuna nota criticamente que a sociedade é injusta e a riqueza,
pessimamente dividida. Pelo enredo da peça, percebe-se que a concentração de
renda nas mãos dos endinheirados contribui para o fenômeno da tibieza de caráter, incentivando pessoas
a lançarem mão da mentira, da astúcia, da presença de espírito, de recursos
ludibriadores que a própria luta insana pela sobrevivência, travada dia a dia,
hora a hora, se incumbe de despertar.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e
doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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