domingo, 31 de maio de 2015

O SANTO E A PORCA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Saudades do escritor Ariano Suassuna (1927-2014). Munidos de sua obra, podemos assimilar melhor esses tempos difíceis de ajuste fiscal. Mãos de tesoura parecem governar a atual política econômica. É verdade que, em tempos de escassez de recursos, os investimentos podem ser redirecionados, detectando as “gorduras orçamentárias” que devem ser queimadas. Mesmo assim, estamos diante do maior contingenciamento de recursos da história em termos nominais: a equipe econômica do Governo Federal anunciou o bloqueio de R$ 69,9 bilhões em gastos no orçamento de 2015. O corte afetou ministérios importantes como das Cidades, da Saúde e da Educação. Não adianta tratar o fogo com gasolina. Precisamos de água: muita calma nessa hora. Ou, como diria o próprio Suassuna: saindo da dicotomia pessimismo versus otimismo, o caminho do meio para o temperamento social adequado reside na prática do “realismo esperançoso”.

O realismo esperançoso contrapõe-se à projeção antiquada de esperança como “desejo sem poder”. A esperança, como posição passiva, se faz prejudicial, pois perde-se, nesta perspectiva, a ideia de ação. A respeito, Chico Buarque, em Pedro pedreiro (1965), critica o comodismo e a postergação como vícios comportamentais que estimulam a pasmaceira generalizada: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem vintém/Pedro penseiro fica assim pensando/Assim pensando o tempo passa/E a gente vai ficando pra trás/Esperando, esperando, esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando aumento/Desde o ano passado/Para o mês que vem/[...] Pedro pedreiro espera o carnaval/E a sorte grande no bilhete pela federal/Todo mês/Esperando, esperando, esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando o aumento/Para o mês que vem/Esperando a festa/Esperando a sorte/E a mulher de Pedro/Está esperando um filho/Pra esperar também”.

Ariano Suassuna conferiu um sentido novo à palavra esperança, ao torná-la princípio ativo da realidade em transformação. Tal propósito muito se assemelha ao verbo “esperançar”, neologismo proposto por Paulo Freire para representar a nobre causa de colocar a pessoa na posição de “agente cidadão”. Para que o Brasil alcance a maturidade econômica, impulsionando a vitalidade social, o escritor paraibano percebia a necessidade de se reformar, pela raiz, a mentalidade patrimonialista nacional, via educação problematizadora da cobiça e da avareza que nos corrompe historicamente. Pelo caminho da ironia inteligente, Suassuna, na peça O santo e a porca (1979), oferece uma crítica contundente aos costumes materialistas de teor ganancioso.

O início da “Imitação Nordestina de Plauto” se dá com o diálogo entre Caroba e Euricão, o qual recebe a informação de que Eudoro enviou-lhe uma carta pelas mãos do criado Pinhão. Por sua vez, a leitura da carta, que se dará na sequência, desencadeará um sem fim de quiproquós. Exemplo disso se encontra no primeiro ato da peça, em que Margarida, a filha, lê a carta enviada por Eudoro, seu pretendente, ao pai avarento: “MARGARIDA – De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo de seu mais precioso tesouro!/EURICÃO – Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso! Meteu na cabeça que eu tenho dinheiro escondido e quer roubá-lo”.

Euricão, ao ouvir parte da carta, lida pela filha, entende que o tesouro mencionado é seu dinheiro. Contudo, Eudoro se refere a Margarida. Quando são confundidas Margarida e a porca, Dodó e Margarida não associam o vocábulo “porca” ao objeto de madeira em que o velho guardava seu tesouro; o entendimento de “porca” em seu sentido figurado, por sua vez, acaba por desencadear um novo mal-entendido, haja vista que os jovens pensam que o velho profere xingamentos à filha. Por trás da confusão semântica, confundir a filha do avarento com a porca contribui para sua coisificação, processo criticado por Ariano Suassuna como extremismo reificador.

Não é apenas a preocupação em defender sua riqueza que atribui a Euricão tal aspecto. Ele tornou-se avaro em decorrência de uma perda: “EURICÃO – [...] Mas parece que Santo Antônio me abandonou por causa da porca. Que santo mais ciumento, é “ou ele ou nada”! É assim? Pois eu fico com a porca. Fui seu devoto a vida inteira: minha mulher me deixou, a porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem você me deram a sensação que a porca dá. Ah, minha bela, ah, minha amada!”.

A porca, isto é, a avareza, passou a ocupar um lugar de destaque na vida de Euricão a partir do momento em que perdeu a mulher; trata-se de um elemento que supre uma lacuna, uma perda. O velho avarento, não tendo mais o seu tesouro, haja vista que descobre a perda de validade do dinheiro, apega-se a Santo Antônio como o único parâmetro de conforto que lhe resta. Em O santo e a porca, Ariano Suassuna nota criticamente que a sociedade é injusta e a riqueza, pessimamente dividida. Pelo enredo da peça, percebe-se que a concentração de renda nas mãos dos endinheirados contribui para o fenômeno da tibieza de caráter, incentivando pessoas a lançarem mão da mentira, da astúcia, da presença de espírito, de recursos ludibriadores que a própria luta insana pela sobrevivência, travada dia a dia, hora a hora, se incumbe de despertar.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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