domingo, 31 de maio de 2015

O ESTRANHO E O FAMILIAR


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na esteira de Sigmund Freud e do artigo O estranho/Das Unheimliche (1919) escrito por ele, sou mais simpático à ideia de que o homem apresenta competências e habilidades para transformar o estranho em familiar, a partir do processo de assimilação compreensiva. Penso que o princípio aristotélico que consagra o ser humano como animal racional alimentou muito a soberba da espécie, contribuindo para a formação de ciladas vaidosas e arrogantes que só estreitam o potencial da nossa dinâmica subjetiva. 

Na tradução de unheimlich para outras línguas, encontramos acepções tais como: estrangeiro, hora ou lugar estranho, inquietante, desconfortável, sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco. Poderíamos dizer que Freud apoia-se numa ambiguidade linguística que produz um curioso efeito: heimlich, que quer dizer familiar, também significa algo secreto e oculto, o que, paradoxalmente, torna essa palavra próxima de seu oposto, unheimlich. Aos exemplos que Freud oferece em seu texto, podemos acrescentar outro mais próximo de nós, falantes do português: a palavra estranhar é comumente utilizada para a situação em que o cão não reconhece seu dono ou alguém conhecido, ou seja, uma situação que deveria lhe ser familiar. E curiosamente, em espanhol, estrañar significa “sentir saudades” – remete a algo familiar que não está mais presente. Considerando ambiguidades desse tipo, Freud aponta que o estranho, unheimlich, é, de alguma forma, uma “subespécie” de heimlich, do familiar (que é também o oculto, o secreto). Nem tudo o que é assustador ou sinistro evoca o sentimento do estranho, mas apenas aquelas situações em que, justamente, há também subversão da lei do recalque, fazendo com que aquilo que deveria ter permanecido “secreto e oculto” venha à tona. 

Em termos de expressão da alteridade, as noções de “estranho” e familiar” se articulam com o fenômeno do duplo, proveniente da separação entre as realidades interna e externa, entre o “eu” e o “outro”. Chamamos de “Poética da Relação”, este intervalo afetivo por onde as subjetividades se realizam, constituindo uma familiaridade perceptiva capaz de processar certas estranhezas, sem enquadrá-las como exóticas ou meramente toleráveis. A convivência, de fato, ocorre quando a diversidade intra e interpessoal é promovida em cenários convergentes e divergentes. Nesse sentido, cabe como uma luva o pensamento de Zeca Baleiro, expresso na canção Meu amor, minha flor, minha menina (2005): “Antes o atrito que o contrato”. Na diversidade, estranho e familiar convivem eticamente. Na uniformidade, só existe a etiqueta do familiar acordado. Lembremos: etiqueta significa convenção, “pequena ética”.

A atitude de estranhamento diante de si mesmo pode favorecer o cultivo da autoestima, uma vez que a prática em destaque possibilita compreender a identidade pessoal e coletiva como processos de formação e aprendizado continuados. A respeito, José Sóter, em Navegante ao léu (2011), dedica versos esplêndidos sobre a importância do distanciamento como estratégia salutar de análise frente aos envolvimentos que vivenciamos diariamente. No poema “eu e a vida”, o eu-lírico se apodera de múltiplos sentidos: “a minha relação com a vida/sempre foi a de um leitor/mesmo quando me referencio em mim/o faço como espectador”. Considerando a linha de pensamento freudiano, Sóter refere-se ao “estranho” como sendo um ritual de deslocamento relevante, no sentido de arejar a familiarização do sujeito diante das virtudes e dos vícios comportamentais que caracterizam a condição humana.

O aspecto de íntima familiaridade da estranheza aqui em questão nos remete, dentre outros aspectos, ao tema do narcisismo, como condição desta familiaridade que vemos muitas vezes mostrar-se estranha ao “eu”. A partir das formulações do psicanalista Jacques Lacan sobre o estádio do espelho, observamos que a imagem própria, que só pode ser apreendida numa exterioridade, pode tornar-se fonte de estranheza, como ocorre no fenômeno do duplo, exemplo paradigmático do unheimlich. Anterior às especulações reflexivas nesta matéria, Machado de Assis, por meio do personagem Jacobina, já trazia elementos ficcionais instigantes para o debate acerca dos meandros comportamentais que compõem a personalidade. Sobre a essência e aparência como vetores pertencentes à psicologia humana, o alferes, no conto O espelho: esboço de uma nova teoria humana (1882), desenvolve o seguinte parecer: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Nosso psiquismo ocupa, portanto, a posição de entrelugar, envolvendo tanto os anseios internos como os anseios externos que afetam, diretamente ou indiretamente, o processo de construção identitária.

A partir do conceito freudiano de inconsciente, a noção de estranho passa a ser concebida como um dos aspectos do psiquismo, perdendo seu caráter patológico para integrar, no seio da unidade presumida pelo sujeito, uma alteridade. Somos divididos, estrangeiros para nós mesmos, já que “o eu não é senhor em sua própria casa”, destaca Freud, no artigo Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Pelos caminhos de Freud, a gente se depara com a constituição de uma imagem própria, seu papel indispensável na constituição do “eu” e, ao mesmo tempo, a fragilidade e o estatuto de ficção deste eu, assim como a exterioridade desta imagem própria, já que, segundo o poeta Rimbaud, “eu é um outro”. O psicanalista, no texto dedicado à questão da inquietante estranheza, retoma esta subversão, mostrando que aquilo que sentimos como estranho não é nada novo, mas sim intimamente familiar, “aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz”. 

* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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