Marcos
Fabrício Lopes da Silva*
Como tese argumentativa, apresentaremos como
hipótese pensar a educação antropofágica como proposta pedagógica relevante e
extremamente necessária para a vida em plenitude criativa. Por antropofagia, entendemos
como habilidade modernista e moderna de construir o novo em diálogo criativo
com a tradição. Por tradição, compreendemos aquele legado do passado que se
presentificou para o bem da razão e da emoção articuladas. Modernidade, em
linhas gerais, significa a novidade movida à historicidade. No universo
brasileiro, destacar o modernismo como modernidade específica, em escala
literária e cultural, significa reconhecer o importante papel de ações
artísticas na relativização do horizonte erudito pela sabedoria do
coloquialismo popular, irreverente e inventivo. Há que se considerar também o
papel da ironia nesta projeção expressiva, o que possibilitou fundamentar um
dispositivo intelectual e emocional arejado em matéria de humor e sátira. Foi
possível, partindo, por evidência consagrada, do acontecimento “Semana de Arte
Moderna de 1922”, contar publicamente ‘segredos de liquidificador’ que
vitaminaram o Brasil, evitando a fórmula ufanista-romântica. Assim, o senso
crítico voltado para o “Brasil Profundo” saiu-se fortalecido nas construções
literárias e artísticas daquele tempo, desdobrando-se positivamente na contemporaneidade.
A nação se agigantou graças a um estatuto estético-político mais localizado e
universal, ao mesmo tempo. Fez-se diálogo fecundo com as vanguardas europeias,
com desenvoltura mais independente. A subserviência ideológica foi deixada mais
de lado. Entrou em campo um tipo de originalidade, angariando combinações
inusitadas de autorias múltiplas.
À luz do tropicalismo autêntico desenvolvido por
Tom Zé, é possível ler o modernismo como excelência do atrito, marcada por duas
linhas de força criadora: “a era autoral” e “a era do plagicombinador”. Penso,
neste caso, no saboroso slogan promovido
no Movimento Antropofágico, que serviu de linha coletiva e, portanto, orgânica
para orientar as autorias modernistas: “Tupi or not tupi. That’s the
question!”. Desse modo, antropofagicamente Shakespeare e Lima Barreto foram
assimilados com despojamento inaugural impressionante. Em relação ao dramaturgo
inglês, ficou para a história o dilema clássico trazido por Hamlet: “To be or not to be! That’s the
question!”. O adágio em destaque coloca em cena o questionamento existencial da
condição humana: uma espécie de pêndulo que ora gravita para o sentido da autenticidade,
ora caminha para o polo da dissimulação. Angustiado com a podridão imoral que
tomava conta do Reino da Dinamarca, Hamlet percebeu que sua família, tomada
pela cobiça do poder, diminuiu a chama do “ser” para ficar com os holofotes do
“ter”, isto é, do “não ser”. Os modernistas, tais como Mário e Oswald de
Andrade, trouxeram esse clima especulativo para revisar a história brasileira,
repercutindo um ângulo rico no tocante à poética da diversidade: nós,
brasileiros, assumiremos autenticamente nossa formação indígena com respeitosa
alteridade ou continuaremos a promover genocídios impostos aos povos
originários, desde a bárbara colonização que se instalou em nossas terras? Convém
destacar que o tema já havia sido trabalhado pelo autor pré-modernista Lima
Barreto, ao construir corajosamente o personagem Policarpo Quaresma, um defensor
apaixonado do idioma tupi-guarani como língua autenticamente brasileira.
Abrangente, a antropofagia como virtude educacional
pode também interligar os campos da política e do esporte. O slogan “Yes, we can!” deu sustento
simbólico à vitória de Barack Obama como primeiro presidente negro da história
dos Estados Unidos. Em bom português, o referido lema significa: “Sim, nós
podemos!”. Uma bela sacada de marketing
trouxe à tona o empoderamento coletivo representado pela ascensão da comunidade
afrodescendente ao poder central que lhe é também de direito. Foi a realização,
nas urnas, do desejo libertário do grande líder Martin Luther King: “Eu tenho
um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde
elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. No
futebol, o Clube Atlético Mineiro (C.A.M) se apropriou antropofagicamente do refrão
estadunidense para bordar o canto da torcida: “Yes, we C.A.M.!”. Construiu-se o
mantra perfeito que levou o Galo ao maior título de sua história: a conquista
da Taça Libertadores da América, em 2013. Criativamente, a torcida consolidou o
arquétipo de que o Clube Atlético Mineiro logo representa potência coletiva
triunfante. É justo perceber, nesta ordem, o diálogo frutífero, envolvendo este
fato contemporâneo e a tradição salutar. Nos anos 70, em plena ditadura militar, o ídolo atleticano, Reinaldo, sempre comemorava os gols, reproduzindo o gesto do movimento Panteras Negras (coletivo empenhado na luta contra o racismo nos Estados Unidos): o artilheiro erguia o braço e cerrava o punho.
Em termos de pensamento crítico, as reflexões aqui arroladas ganham alto estofo no livro Vale quanto pesa (1980), escrito por Silviano Santiago. A educação antropofágica rejeita o binômio fonte-influência (paradigma autocrático) para abraçar o livre fluxo da confluência (paradigma democrático). Nas palavras do eminente pesquisador: "faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um movimento paradoxais, que por sua vez darão início a um processo tático e desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam a um solo histórico e cultural homogêneo”. Portanto, graças à educação antropofágica, colocou-se em xeque “a verdade da universalidade colonizadora”, promovendo, por sua vez, “a verdade da universalidade diferencial”.
Em termos de pensamento crítico, as reflexões aqui arroladas ganham alto estofo no livro Vale quanto pesa (1980), escrito por Silviano Santiago. A educação antropofágica rejeita o binômio fonte-influência (paradigma autocrático) para abraçar o livre fluxo da confluência (paradigma democrático). Nas palavras do eminente pesquisador: "faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um movimento paradoxais, que por sua vez darão início a um processo tático e desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam a um solo histórico e cultural homogêneo”. Portanto, graças à educação antropofágica, colocou-se em xeque “a verdade da universalidade colonizadora”, promovendo, por sua vez, “a verdade da universalidade diferencial”.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e
doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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