domingo, 31 de maio de 2015

A PERFEIÇÃO NÃO EXISTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*



Considerando melhor o aprendizado com a arte de saber lidar com a incerteza, sem torná-la apavorante, minha subjetividade, incluindo crises de depressão e euforia no meio do caminho, vem experimentando processos lapidares de formação continuada. Crises, é bom que se diga, costumam possibilitar “aberturas para um milagre”. A última delas, por exemplo, fez-me pensar sobre a nossa fase quadrúpede. Momento em que o ser humano tinha a sua animalidade mais acentuada, e o seu nariz mais apto a farejar. Estávamos mais entregues à gravidade, mais coladinhos ao chão. Por isso, também englobo este momento como situação de “entrega”. Clinicamente falando, o sentimento de “entrega” se faz muito presente na depressão. Era como se eu voltasse a ter as mãos e os joelhos prostrados no chão. Longe de alimentar este parecer como situação humilhante, sublinho que a experiência depressiva me fez olhar o chão em lugares outros que este não se encontrava naturalmente presente. Cabisbaixo estava, o que denotava uma típica postura depressiva, “obrigação postural” voltada sempre para o centro da gravidade. Repare aqui o peso do “sempre”. Olhar para o chão faz parte. Porém, com a leveza presente na expressão: “de vez em quando”.

Quando o termo “de vez em quando” aparece, de fato, como busca temporal do ser em vivenciar melhor a espacialidade, temos a façanha de fundamentar uma nova postura: a de ficarmos com a cabeça erguida. Com ela, olhamos para o alto, e este ar de elevação nos movimenta a encontrar nossas asas em plenos pés no chão. Levamos muito tempo histórico para transcender a posição quadrúpede e, assim, experimentar a nossa condição bípede. Isto aconteceu quando a gente começou a resistir às ambições gravitacionais, que nos empurravam para baixo. Considero este momento como situação de “resistência”. Se esta “resistência” for mal lida como onipotência, experimenta-se um desajuste psíquico chamado euforia ou felicidade desmedida. Ciente desse transtorno, também chamo de “resistência” a potência necessária para que possamos alcançar a saúde.

Entre a entrega e a resistência, a vida, bailarina, se comporta; aprendemos como seres viventes que a flexibilidade qualifica a coerência. Como podemos, de fato, melhorar de verdade? Pensei na expressão “Melhorou?”, como termo de gradual evolução, o que difere do verbo “curou?”, no qual a doença é percebida como inimiga, e a solução como panaceia (algo muito perigoso e imediatista, pois oferece razão à nossa prepotência). Vale, neste contexto, tomar conhecimento de uma história contada pelo médico e campeão da Copa do Mundo de 70, Tostão, em seu fabuloso livro A perfeição não existe (2012). Quando era professor de medicina e orientador dos futuros especialistas em clínica médica, Tostão e sua equipe viveram um forte desafio:

“No Hospital Universitário, havia um doente portador de asma brônquica. Ele não melhorava. O médico-residente estava em pânico. Discutimos várias vezes o problema do paciente, trocamos os medicamentos, fizemos reuniões clínicas, estudamos a literatura recente, consultamos os especialistas – sem resultado. Havia algo errado que fugia à nossa compreensão. Uma noite, fui ao hospital conversar com o paciente. Queria conhecer melhor o doente, e não apenas a doença. Aproveitei o silêncio e o sono de outros pacientes da enfermaria, sentei-me ao seu lado e batemos um papo. No final da conversa, após idas e vindas, confissões e recuos, ele me disse: ‘Doutor, o jovem médico que cuida de mim não tem culpa. Nem ele, nem você, nem ninguém vai resolver o meu problema. Não melhoro porque no fundo da alma não quero melhorar’”.

Sinto nesta narrativa uma oportunidade rica de compreender a saúde como o encontro (ou reencontro) da gente com o fundo da nossa alma. É a saúde que nos tira da posição de entrega para a condição de resistência. A doença deixa de ser percebida por quem a sente somente como gravidade. A doença é a melhor amiga para indicar o que está errado em nosso organismo. Assim percebida, temos como averiguar o que está impedindo o ser humano de tirar melhor proveito da sua resistência bípede. A entrega quadrúpede se aprofunda em momentos depressivos, considerando também os seus opostos eufóricos.

Esta reflexão proposta por nós ganhou um frescor poético fascinante, quando dialogamos com outras formas de entendimento da vida. Refiro-me, aqui, por exemplo, a música Gravity (2008), de John Mayer: "Gravity is working against me/And gravity wants to bring me down/Oh, I'll never know what makes this man/With all the love that his heart can stand/Dream of ways to throw it all away/Oh, gravity is working against me/And gravity wants to bring me down/Oh, twice as much ain't twice as good/And can't sustain like a one half could/It's wanting more that's gonna send me to my kness/Oh, gravity stay the hell away from me/Oh, gravity has taken better men than me/How can that be?/Just keep me where the light is/Just keep me where the light is/Just keep me where the light is/C'mon keep me where the light is/C'mon keep me where the light is/C'mon keep me where, keep me where the light is".

Propõe o músico estadunidense uma interpretação refinada sobre o fenômeno da gravidade que afeta o temperamento humano. Mayer alerta que o peso existente no viver não deve ter carga dobrada. É por meio da leveza que a gente deixa de embarcar na exigência demasiada voltada para suportar tudo o que se passa, evitando, desse modo, a queda de joelhos. O artista informa, com pesar, o fato de a gravidade ter levado pessoas brilhantes. Face ao exposto, solicita que a luz esteja onde ele se encontra, fazendo com que a escuridão trazida pela gravidade deixe de existir. Aproveitando a proposta de Mayer, consideramos "cair de joelhos" uma forte imagem para ilustrar a noção de "entrega" que nos adoenta profundamente. Já, trazendo à baila a concepção de "resistência", consideramos a saúde como a "luz" fundamental para a qualidade de vida humana existir.

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

Um comentário:

  1. Parabéns belo texto!  

    Não melhoro porque no fundo da alma não quero melhorar.
    muitas coisas dependende mais de nós mesmo do que das eventualidades da vida.

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