domingo, 13 de agosto de 2017

POBRE NEM IPOD

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Gosto de escrever sobre o que me toca. O que me toca não me deixa sossegado assim como não deixo sossegado o que me toca. Fiquei à flor da pele, ao tomar ciência da música-poema Pobre Nem Ipod, cuja autoria emana da criatividade do escritor DuduLuizSouza. Tomem nota do nome completo do poeta em destaque: Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011) e graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2003), o multiartista compôs a seguinte façanha e repercutiu a voz dos ignorados pela globalização de teor mais excludente:

“Pobre não pode, nem (a)ipod, ou pode?, tão pouco com tanta tecnologia vinda da maçã transnacional já que enfim we are champions dentro deste world same as the vermelha apple que aquela professora ganhou in início deste movie da nação way of life, descarrilhada ao longo da vida e sem visão down on the floor do jardim deste cemitério globalizante da morte those personagens periféricas that território chamado planet terra que, nesta parada do espaço, comeu o vômito digitalizado com sabor de chip guardado naquele website intitulado humanity globolitarizada, ou humanidade globalmilitarizada”.

O texto do poeta mineiro dialoga fecundamente com a antropofagia modernista proposta por Oswald de Andrade, digerindo, com gosto criativo, Willian Shakespeare, em Hamlet. To be or not to be? That’s the question! – escreve o dramaturgo inglês. Na periferia do capitalismo, o poeta paulista, como um verdadeiro ponta-de-lança, dispara: Tupi or not tupi? That’s the question!. Enquanto Shakespeare reivindica o protagonismo do “ser” (to be) diante do “ter” (not to be), considerando o contexto da peça em questão, na qual a família dirigente do Reino da Dinamarca se dissolve em frangalhos, por conta de acirradas disputas patrimoniais entre os seus membros, Oswald de Andrade destaca o protagonismo indígena no processo de constituição e desenvolvimento da sociedade brasileira. DuduLuizSouza, investido de experimentalismo poético ímpar, parece sugerir: Ipod or not Ipod? That’s the question!.

A cultura digital é o novo paraíso artificial da vez, reforçando mais uma vez a prática histórica de que a balança comercial do mundo favorece os produtos tecnológicos de maior valor agregado. Fernando Henrique Cardoso reeditado: uma Neoteoria da Dependência toma corpo, e o Brasil, na tentativa de conciliar Chiclete com Banana, continua banguela e exportando o melhor de sua comida. Somos um país tecnologicamente modificado, onde dividimos a atenção de nossas mãos entre o passado tacape e o futuro celular. Estamos conectados em rede, menos os pejorativamente chamados de analfabytes. Como é cruel a estigmatização generalizada, isto é, a “humanity globolitarizada”, segundo o parecer preciso do poeta, mergulhado no torvelinho histórico do seu tempo.  DuduLuizSouza trata bem a ferida: existem poucas maçãs para muitas Evas. O modelo globalização-titanic continua. Não têm botes salva-vidas para toda a tripulação: logo, prioridade para os cidadãos de “primeira classe”. Steve Jobs, Midas cibernético, morreu e guardou para si a fórmula de transformar em ouro tudo o que toca. Nas palavras do poeta mineiro, andamos desgovernados nos trilhos governados pelo american way of life. Maneira soft de dizer com todas as letras: “capitalismo parasitário”, conforme adverte Zygmunt Bauman.

Na esteira do refletir proposto por DuduLuizSouza, fica a pergunta: por que o Brasil, à maneira neoliberal, “comeu o vômito digitalizado com sabor de chip guardado naquele website intitulado humanity globolitarizada”? Bauman, em Capitalismo Parasitário (2010), explica: “A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. Em geral, as políticas do Estado capitalista, ‘ditatorial’ ou ‘democrático’, são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados; seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) é avalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado”.

Considerando as palavras do escritor mineiro, por trás dos escombros do “cemitério globalizante” (agonizante!), encontra-se um contexto sombrio e bombástico, literal e metaforicamente falando. A respeito, Ricardo Silvestrin, em O menos vendido (2006), canta a pedra: “caiu o muro de Berlim/e o socialismo veio abaixo/caíram as torres gêmeas/e o capitalismo foi pra cima”. Preferimos confiar nas forças armadas a acreditar na leveza desarmada. A militarização até os dentes de chumbo do sistema se afirma até nas lágrimas de hipocrisia choradas pela “verba”, diante do “verbo” em estado terminal.

Em um mundo falsamente integrado, compreende-se o porquê do hino apoteótico We are the champions! Mas, como ficam os “perdedores” nesta “aldeia global”? Os fracos não têm vez? Sobrevivem só os mais fortes? Sustentamos um modelo insustentável de desenvolvimento: consumo de século XXI, mas cidadania de século XIX.  Já em 1821, Hegel, ao analisar a sociedade capitalista nos seus primórdios, estabeleceu, em Princípios da Filosofia do Direito, que a pauperização econômica acarretaria enormes desvantagens em termos de educação, formação profissionalizante, cultura, grau de informação, sentimento de justiça e autoestima. O “desfavorecimento”, mesmo em apenas uma área parcial, produz uma “reação em cadeia de exclusão” que resulta, não em último lugar, na “pobreza política”. Nesse sentido, o poema de DuduLuizSouza nos revela que se podemos falar de “globalização”, trata-se de uma globalização sob a lei do capital; em outras palavras, a mundialização é uma monetarização. O capitalismo pode conviver com isso, mas a democracia, não.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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