quarta-feira, 14 de outubro de 2015

DIREITO COMPREENSIVO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


“Com menos julgamento, os enredos ganham uma luz diferente. As sombras ficam menos tenebrosas e mais aceitas. Aqui me refiro às minhas sombras, não às dos demais. O primeiro julgamento a cessar é aquele em que o réu sou eu”. A qualidade existencial e argumentativa de tais reflexões, expressas por Lucas Tauil de Freitas, na revista Vida Simples (fev. 2015), evidencia como relevante e necessária a prática do Direito Compreensivo no campo de nossas ações ordinárias e extraordinárias. Considerando a bela definição de política sugerida pelo advogado Oscar Vilhena Vieira, na revista Página 22 (mar. 2013), “a esfera da construção do que não está pronto”, o Direito Compreensivo, baseado no princípio do zelar e compreender, pode se sustentar na capacidade humana de observar a realidade, livre de expectativas ou ideias pré-concebidas, com o objetivo nobre de se aproximar de um problema com o mínimo de respostas prontas e o máximo de ângulos e aberturas inesperados.

O Direito Compreensivo entende como base aliada o que é visto como perigoso dissenso, conforme o sentido regido pelo entendimento trivial. A respeito, destaca o professor Tarcísio Ferreira, no jornal Estado de Minas, de 29/10/1999, colhendo a sábia fala de sua cozinheira, Conceição: “‘A fala da gente tem duas ponta, uma na língua da gente, outra no ouvido dos outros. Quando ela sai da gente tem o cheiro da gente e quando entra no ouvido do outro, pega o cheiro do outro. Então as ponta não conjumina’”. A felicidade possível no casamento das divergências se chama democracia. Mesmo a sua forma mais comum, a democracia liberal se divide em dois tipos fundamentais: a “teoria democrática convencional” e a “teoria democrática radical”. Na primeira, o povo desempenha um papel passivo e limita-se a escolher entre os programas que os candidatos têm a oferecer. E os representantes, uma vez eleitos, têm um grande espaço para exercício de arbítrio, embora a exigência de eleições subsequentes signifique que eles se encontram subordinados, em última análise, aos eleitores. Já no modelo radical o povo tem um papel positivo, propulsor: os candidatos respondem às iniciativas políticas do povo, e não o contrário. Além disso, não se espera dos representantes eleitos que usem o arbítrio, mas que apenas executem as instruções de seus eleitores. Em suma, não passam de delegados. 

Segundo Robert A. Dahl, em A democracia e seus críticos (2012), podemos, em adição a essas teorias, reconhecer a existência de uma teoria democrática participativa, que afirma a necessidade de amplo compromisso por parte de todo o povo. Representa, assim, verdadeiro eco da democracia radical com a dimensão adicional de que a participação coletiva deveria ampliar-se para além do sistema político como se concebe habitualmente, chegando-se ao local de trabalho e à economia de maneira geral. O Direito Compreensivo engloba, portanto, a radicalização da democracia. Esta passa pela ideia  de que não cabe a ninguém, nem a nenhum poder, fixar um sentido unívoco para o que vem a ser “bem comum” ou “interesse público”. Essa decisão cabe à própria sociedade e somente com maior influência dessa sobre o Estado, poderemos aumentar a legitimidade da gestão estatal, cuja maior beneficiária deve ser a sociedade. Nesse sentido, compreende-se melhor a sentença proferida por Dennis Prager, diplomado pelas universidades de Columbia (EUA) e de Leeds (Inglaterra), além de articulista dos principais jornais de língua inglesa: The bigger the government the smaller the citizen (“Quanto maior o governo, menor é o cidadão”). Com outras palavras, Renato Russo e a Legião Urbana destacaram, na canção Baader-Meinhof Blues (1985), uma concepção bastante libertária em matéria de ciência política: “Não estatize meus sentimentos/Pra seu governo/O meu estado é independente”.

De todo modo, ou a democracia se radicaliza, ou sucumbirá ao se tornar mero sistema formal legitimador da hierarquia, criando obstáculos, desse modo, à emancipação social. Anthony Giddens, no livro As consequências da modernidade (1991), a crise da democracia vem dela não ser suficientemente democrática. Para ele, a pergunta que se faz é: como democratizar a democracia? Giddens aponta a essência da reforma política, a saber: 1. descentralização; 2. renovação da esfera pública em busca de transparência; 3. eficiência administrativa; 4. mecanismos de democracia direta; 5. governo como administrador de riscos. 

A diminuição do Estado abre um espaço que é disputado entre duas forças: a Sociedade e o Mercado. Quanto mais a Sociedade ampliar seu espaço, menos o Mercado terá poder. Quanto maior for o espaço do Mercado, mais a Democracia terá conteúdo meramente formal. Reduzida que estaria ao exercício do direito de voto e a realização de eleições regulares. Muito pouco para quem deseja uma sociedade emancipada cujo projeto de realização está fundado nas bases da solidariedade e dignidade do ser humano. Viver significa estar imbuído do espírito igualitário, de um sentimento democrático, gozar da mesma igualdade de direitos, de liberdade e da verdade. 

Graças ao Direito de base compreensiva, mais propenso a incentivar medidas socioeducativas do que somente estimular penas vigilantes e punitivas, Alexis de Tocqueville, em A democracia na América (1835), preconizou, com acento emancipatório, os modelos ideais de Sociedade e Estado que precisamos sedimentar: “O verdadeiro e digno conceito de igualdade repousa na ideia de que todos os seres racionais são dotados por natureza de faculdades capazes de um desenvolvimento nobre. O dever do Estado consiste em colocar todos os membros da sociedade em condições equitativas de buscar seu aperfeiçoamento. O dever do Estado consiste em oferecer os meios próprios para provocar uniformemente a revelação das superioridades humanas, onde quer que existam”. 


* Professor das Faculdade JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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